domingo, 29 de maio de 2011

Desafios

Nos últimos dias tenho sentido saudade. A saudade de Pablo Neruda, de amar um passado que não passou, de não ver o futuro que nos convida. Saudades de Márcia, de seus desafios e exigências. Pessoinha difícil de compreender, diria minha mãe. A conheci lá atrás, na adolescência. Encontro meio desencontrado. Esbarramos-nos. Ela correndo para fazer algo que, dizia, não poder esperar, e eu tranquilamente andando para desanuviar da prova de matemática, que me havia tirado o sono e sossego na véspera das férias escolares.
 Márcia é assim. Sempre apressada à procura de algo. Ninguém a alcança. Não permite se resumir como Clarisse Lispector e não se soma. Talvez viva os devaneios de Florbela Espanca, sempre à espera que alguém leia os seus sinais e a acolha. Quando alguém tenta segurá-la, voa. Ainda jovem sonhava com o tablado. As 15 anos integrava grupo teatral em Recife. Pensava na Broadway, sucesso, fama.

Nascida na zona da mata pernambucana e criada na capital, se desesperou quando chegou em Saboeiro pela primeira vez. Ralhou com o irmão por tê-la levado a um lugar tão atrasado. O que discordo. Era uma cidade cheia de vida à espera de ser desbravada, que entrassem em seus mistérios.

Estava sempre desafiando as pessoas, com aquele olhar penetrante. Antipatia mútua nos cercava. Quase não nos cumprimentava. As férias já acabando e fomos aos Caldeirões, balneário abençoado pelo rio Jaguaribe a dois quilômetros da cidade. Márcia resolve me provocar. Convida para pular de uma das pedras mais altas do lugar em direção ao poço mais profundo. O medo toma conta do meu ser, mas não podia deixar aquela espevitada me vencer. Aceito e quando me dou conta estou lá embaixo, tentando submergir. A raiva invade  o meu ser enquanto ela ri do meu atrevimento. Decidimos desvendar as locas do poço. Nadamos a manhã inteira, nos desafiamos outras vezes. Nascia uma grande amizade de aventuras.

Em Saboeiro, a primeira de tantas. Na última, já se vai mais de duas décadas, cruzamos as Minas Gerais, de ônibus, trem maria-fumaça.  Percorremos as cidades históricas em mais de uma semana. Nas ladeiras de Ouro Preto, muitas discussões. Eu, querendo conhecer todas as igrejas. Ela, as minas de ouro e pedras preciosas. O aconchego voltou somente em Sabará, com a promessa de entrarmos no acordo sobre os passeios.

Vinte dias antes, estava eu cruzando a Argentina, numa viagem pelas principais províncias daquele encantador país até Buenos Aires. Na volta, serras gaúchas. Numa noite de frio em Gramado, a localizo, por telefone, no Pantanal. Marcamos encontro na capital mineira em cinco dias. Muitas lembranças da garota alta, morena, cabelos e olhos pretos, voz forte e determinada. Em São João Del Rey, cansadas da viagem, resolvemos nos separar. Voltei a Belo Horizonte. Ela seguiu para o Rio de Janeiro e de lá Nova York. 

Márcia estudou teatro em Nova York, concluiu, com louvor, a Faculdade de Medicina de Recife. Buscou o seu caminho em viagens a Europa, Ásia, Américas. Encontrou na África, onde hoje integra a organização internacional Médicos Sem Fronteira. Trocou o luxo, sucesso nos tablados pela ajuda humanitária na Costa do Marfim.

Há muito não nos vemos. As notícias vêm por cartas, hábito por nós adquirido ainda na juventude. A tecnologia é pouco usada, só para avisar que elas estão chegando. Talvez para não perder o vínculo com o passado. A rebelde e antipática Márcia se transformou na solidária e competente pediatra, mãe de seis adolescentes etíopes, adotados ainda crianças. Não sei se sente falta dos aplausos da platéia, mas é realizada com a vida de doação.

Na madrugada de sexta-feira passada fui surpreendida com telefonema. Era minha amiga. Queria falar sobre o blog, tantas coisas para conversar e ela rindo das aventuras de criança. Matamos a saudade, pedi para contar a sua história. Com uma condição, exigiu. Que lembrasse do que ensina Gabriel Garcia Marques de que “a vida não é o que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como a recorda para contá-la”. Pois é, Márcia, essa é a história que recordo.


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