domingo, 23 de outubro de 2011

Aventuras de criança

A infância no interior, especialmente nas cidades pequenas, é um rico tesouro de aventuras, aprendizado. Trago guardado no baú das recordações, as brincadeiras, guisados, o rio Jaguaribe... o pulsar da vida. Do meu tempo de criança, em Saboeiro, o que mais me emociona são os amigos. Alguns distantes, outros ainda em contato, mas todos no coração. Como esquecer Dolores, Marta, Adailta, Dinorah, Vasco, Rita, Helânia, Ludogério, Audifrança, Liduína, Magda, Weldilene, Gotardo...? 


São tantos e tão queridos. Fazem-me querer ressuscitar a infância dos meus sonhos, aquela que existe dentro de mim como saudade. O encanto das pequenas felicidades perdidas, de alegrias já idas. Com cada um, momentos inesquecíveis, sonhos sonhados na pracinha Monsenhor Manuel Cândido, banho nos caldeirões, reisados, tertúlias, jogo de gamão debaixo do pé de castanhola, partidas de buraco na sala de jantar da Iolita, piqueniques, férias na fazenda Mamoeiro.


Não, não estou melancólica. Apenas recordando da menina pequena que era só olhos, boca e desejo pelos bolos de tia Águeda, o pirão de carneiro da vó Mundinha e as deliciosas sopas de dona Cristina. Como resistir a ova de “branquinha” cozida com pitada do amor da avó carinhosa.


A gente mandona lá de casa não tinha muita vez. Tentavam usar de pretensos direitos de educação, mas abusar, nem pensar. Quase ninguém conseguia governar minha vontade. Exceção para vó Mundinha. Bastava um olhar, que a teimosia acabava. 


Menina livre, eu era. Passava horas caçando rolinhas com os primos Dolores e Gotardo para depois comê-las cozidas. Éramos politicamente incorretos. Não saíamos impunes. O castigo cabia aos gansos da fazenda Mamoeiro, que nos impediam de sair da casa grande, sob pena de ser por eles caçados. Daquelas aves, tínhamos medo. Acreditávamos, nós, serem elas as justiceiras das rolinhas. Ficávamos no alpendre, enquanto os gansos, nos terreiros, pastoreando as crianças.


A mais temerosa aventura foi vivida, no papel principal, por Vasco. Eu, Adailta e Liduina, coadjuvantes nessa história acompanhada por quase toda a cidade.  A culpada, uma pitomba. 


Entre uma partida e outra de gamão, ele chupava a fruta escorregadia. Dados ainda rolando e lá estamos nós gritando que ele perdera a partida. Na ânsia da defesa, Vasco tentou argumentar, mas foi impedido pela danada, que desceu goela a baixo. Ou melhor, ficou preso na garganta. 
Agonia, correria. Cidade sem médico, o jeito era levar o menino magricela para as vizinhas Jucás ou Iguatu. O receio era saber se resistiria tanto tempo. 


Velhas ranzinzas avisavam que não chegaria a oito quilômetros de distância. Faltaria o fôlego e morreria. Outros, mais experimentadas, garantiam que em meia hora estaria de pés juntos. E, por ai vai. Muitas previsões.


Aboletado na cabine da caminhonete do tio, Vasco pensava como desbancar os “sábios” da cidade. Quanto a nós, reza e promessas por sua sobrevivência. A consciência nos cobrava responsabilidade. Horas depois, notícia chega de Iguatu. Vasco derrotara a pitomba. A experiência nos serviu de lição. Nunca mais misturar prazer com diversão, ou seja, pitomba com gamão.

sábado, 22 de outubro de 2011

Palavra: som do coração

Ouvi, dias atrás, que o olhar diz mais que mil palavras. Pode até ser. Mas sou do mundo das palavras, amo-as... uno-me a elas, embora muitas vezes me atrapalhe no dizer. Desde criança, vivo a palavra. Acredito que nos leva a verdade mais profunda existente no ser humano.

Detesto a obscuridade do silêncio. Ele me desespera, exaspera. Ler as entrelinhas é uma angústia. Para os mais espiritualizados, adivinhar o que o outro pensa e sente, é transcender a materialidade. Para mim, uma viagem maluca, que quase sempre nos leva ao labirinto das trilhas e ao abismo da incerteza.

Persigo as palavras, especialmente as que teimam não ser ditas e, avidamente, espero. Deixo-me por elas ser enfeitiçada, assumindo o risco da sedução e ser enganada pelo óbvio. Não faz mal. 


A palavra, no entender de Clarisse Lispector, materializa o espírito. Creio eu, ser o som do coração. Saudade, alegrias, esperança, tristeza, sonhos, amor...vida.

Mordo-as, espero, acredito. Neruda ensina que tudo está na palavra. Diz ele que "uma ideia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu". A incompreensão do dizer, penso eu, é melhor que o silêncio, que impede o mudar, sentir, experimentar, viver.

Embora devore a palavra, muitas vezes calo-me. A angústia vem e tento gritar, ouvir o som voz. Quero a palavra secreta, falada em sussurro, desejada. 

sábado, 15 de outubro de 2011

Escolha ou renúncia?

Não sei se as pessoas nascem com o destino traçado ou ele vai sendo construído através de ações concretas, no caminhar firme, com marchas e contramarchas, avanços e retrocessos. Ultimamente me pego meditando sobre os enigmas da vida, carma, encontros, desencontros, sofrer, amar, felicidade, tristeza, esperar. E a responsável por essa reflexão é Welba, amiga que trago no coração desde a infância. Sua história se assemelha a uma fábula, de tão difícil compreensão. No entender da jovem senhora seu viver é sempre acompanhado pela renúncia. Penso eu que a palavra certa é escolha.

Desde muito jovem, fugiu ela do agir de acordo com figurino da cabeça, de analisar e explicar a vida antes de vivê-la. Preferiu ouvir o coração e se entregar apaixonadamente. O preço, abandonar o projeto de mestrado na Itália pelo casamento com o rapaz vibrante que conhecera um mês atrás. Nunca mais falou em estudo, muito embora acredito não ter esquecido o sonho das descobertas, do questionar e descortinar que a Academia proporciona.

Welba é assim. As decisões, toma sozinha. Espera um ou outro sinal, o coração falar e, pronto. Escolha feita. Não mais olha para trás. Assim fez quando abriu mão de um tórrido romance em nome da família. Conta a minha amiga que renunciar (lá vem à danada se intrometendo na história) esse amor foi como abrir mão do prazer de viver. Mas, os filhos se tornaram prioridade com a possibilidade de perdê-los, após ameaças do marido, que, de compreensivo, tornou-se rancoroso. 

Talvez a traição tenha mudado o  modo de ser e pensar daquele homem. Ou o tenha instigado a cometer adultério, apaixonar-se por outra, abandonar a casa, filhos, esquecer as promessas de amor eterno, fidelidade.

Semelhante ao poeta, minha amiga levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima. Em pouco tempo, novos desafios, escolhas. Quase todas difíceis. Há poucos dias, abriu mão da possibilidade de emprego em país de primeiro mundo, salário alto, crescimento profissional. Para os amigos, loucura renunciar oportunidade única, desejada, idealizada por muitos. Não aceitam que Welba tenha ouvido somente o coração. Neste caso, dizem, a razão deve prevalecer. 

Feito menina que troca a boneca importada pela aventura da caça aos passarinhos no sertão, acredito eu ter minha amiga se embrenhado no mundo do amor, do pulsar. Estaria ela esperando o final feliz ou apenas cuidando do passarinho com asas? Incógnita é minha amiga. Poucos conseguem alcançá-la, descortiná-la. Feito atriz de teatro, está sempre representando e tendo a vida como palco. Tem se especializado em papéis alegres. 

Curiosa, estou cada vez mais próxima de Welba. Acompanho bem de pertinho seus passos, lutas, decisões e renúncias. Semelhante a um adivinho tento prever o final da história. Coisa difícil. Para complicar esse jogo da vida, não sei se o destino vem traçado ou construímos, cada um de nós, o próprio ‘scritp’.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Ele e elas!

Vinicius de Moraes ensina que “para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor”. No pensar e viver do comerciante Renato, a fidelidade não é amor. Para ele, amor é compartilhar. De preferência com muitas mulheres, ou pelo menos com três.
Infiel por natureza, vive maritalmente com Rosane, a irmã dela, Regiane, e uma prima das duas, Selma. As três aceitam o amor dividido do homem feio, deselegante e sem graça. Elas fogem ao ideal estereotipado do amor romântico ainda sonhado por jovens em pleno século XXI, ou da pregação das intelectualizadas que asseguram serem os homens inteligentes mais propensos a valorizar a exclusividade sexual do que homens menos inteligentes.
Neste caso específico, Renato prefere ser burro, mas dividindo, ou somando, a cama e mesa com as amadas. E nem se dá ao trabalho de responder as mexeriqueiras de Saboeiro, que ficam a bisbilhotar a vida da família e especular sobre as noites quentes de verão na casa de oito cômodos.
As mulheres também parecem não se incomodar. Amigas, educam os filhos para aceitar a situação. Cada uma tem dois, para evitar desavenças. O importante é a paz familiar. Nas manhãs de feira, caminham com passos leves para o mercado. De mãos dadas, sorrisos de cumplicidade, escolhem o melhor para o marido e as crias. Vivem juntas, se dão bem, vão à luta e conhecem a dor. Como no dizer de Lulu Santos, consideram justa toda forma de amor.
Nas festas, Renato reserva para cada uma três danças. Assim, todas saem satisfeitas. Viagens, com a família. O problema é o transporte. Não dá todo mundo em um carro. Só de ônibus ou avião. Nas últimas férias escolares das crianças - a mais velha tem dez anos e o caçula, dois – arribaram para Juazeiro do Norte em uma caminhonete.
Aperto, calor, sufoco, irritação. Discussão à vista e o comerciante foi logo arranjando uma solução. No meio do caminho, alugou um carro pequeno para transportar as esposas. Ele e os filhos viajaram na caminhonete.
Na terra de padre Cícero, comprou passagem de avião para São Paulo. Um mês na cidade grande. As mulheres embarcaram nas poltronas ao lado dos filhos. O comerciante, lá atrás sozinho, pastoreando os seus. Na capital paulista, conta uma das filhas, foi muito ruim. As mães exigiam a atenção do homem, queriam passear no mesmo carro, os mesmos presentes. O negócio era voltar logo para o conforto do lar, a paz de casa. Retorno antecipado em 15 dias.
Muito conversê sobre o passeio. Uma ou outra reclamação que Renato resolve logo com um olhar severo. As mulheres baixam os olhos e saem para cuidar dos afazeres domésticos e dos cuidados com os filhos. E vão vivendo o manto negro da submissão, sem darem um jeito nessa torta condição.

domingo, 2 de outubro de 2011

Esquecidos na dor

Rixas políticas, disputas por terras e gado, honra da família na ponta da navalha. As desavenças resolvidas sempre na bala ou faca. Quase sempre nas tardes de sábado, com a feira chegando ao fim. Os moradores já acostumados. Estranho era quando não ocorriam prisões, brigas nos bares estendendo-se pelas ladeiras, homens esfaqueados agonizando nas calçadas, mulheres correndo no socorro aos maridos e filhos, crianças chorando. Saboeiro lembrava a terra de ninguém, de homens que viviam para nada e por nada matavam e morriam.

As festas, seja da padroeira ou de conclusão do colegial, eram sempre um acontecimento. Muito mais por seu final.  A animação ficava por conta das bandas de música contratadas nas cidades paraibanas de Sousa e Patos ou em Recife. Mas, animação mesmo era o seu epílogo. Sem novidades. Tiros para o alto no meio do salão do Mercado Público. Correria. Artistas, desesperados, tentam se safar escondendo-se atrás das caixas de som. Homens e mulheres, esquecidos das lições de civilidade, disputam os dois portões de ferro fundido para chegar à rua principal e ao abrigo seguro.

As garotas abandonam os namorados em troca das colunas do prédio antigo do início do século XX, que resistiu as balas, mas não a ação de uma prefeita que o derrubou para construir um edifício nunca concluído. Mas essa é outra história. Voltemos ao cangaço em Saboeiro. Dias de conversê e especulações sobre o responsável pelo tiroteio. A cada festa, sempre o mesmo final. Mudava, vez ou outra, o seu autor.

No baú das muitas lembranças, carrego dois fatos que marcaram minha infância e me acompanham, semelhante a Josef de Franz Kafka, que acorda certa manhã e, sem motivos conhecidos, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por um crime não revelado. Lá pelos anos 70, a cidade acorda com a notícia de que um arremediado comerciante havia sido assassinato. Desvario. A polícia chega da vizinha Iguatu.Outro batalhão vai de Campos Sales. Prisões, ameaças. O autor do crime corre a boca miúda, mas ninguém com coragem suficiente para denunciar.

Em menos de dois anos, pai e filho são mortos em emboscada, no intervalo de oito meses. Dizem que por vingança.  Crimes de pistolagem que abalaram minha família. Tio e primo de meu pai, muito queridos. Choro, medos, novas ameaças. Lista com nomes das próximas vítimas corre de mão em mão. Especulações. Reza, muita, mas muita reza. Promessas aos pés de Nossa Senhora da Purificação. Pedidos para que a matança pare por ali. Proteção para os maridos, filhos, netos e sobrinhos. Os mais sensíveis recorrem aos calmantes prescritos por médicos apavorados. Famílias inteiras arribando para outras paragens.

Saboeiro precisou de décadas para se recuperar. Ninguém punido ou processado, diferentemente de Românovitch Raskólnikov, que se viu perseguido por sua incapacidade de continuar sua vida após o delito. O crime e castigo de Fiódor Dostoiévski não se coadunam com o cangaço experimentado na cidade de barões e viscondes, escravos e revolucionários esquecidos nos mármores do cemitério municipal, de sertanejos que viveram e travam diária luta pela sobrevivência. 
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