domingo, 25 de setembro de 2011

Premonição ou coincidência?

A família de minha mãe é muito religiosa. A devoção aos santos e o cumprimento os ritos da Igreja Católica são passados de geração a geração. Quando criança, ficava horas observando a bisavó Flora rezando. Mulher miúda, olhos azuis e serenos, vestido longo e negro, como exigia a uma viúva, cabelos em coque na altura da nuca, estava sempre acompanhada por um rosário. Todos as manhãs, lá estava ela sentada em sua cadeira de lona debulhando o terço.

Bivó Flora não perdia uma sexta-feira. Guardava aquele dia em respeito ao sofrimento e morte de Jesus. Não comia carne vermelha, nada de banho, e obrigação de assistir a missa. Antes de se mudar para Saboeiro, onde foi morar com minha avó Mundinha, ela percorria cinco léguas a cavalo da fazenda Belém até a cidade para acompanhar a liturgia na Igreja de Nossa Senhora da Purificação. Já com seus 90 e poucos anos, era levada pelos filhos, que respeitavam sua devoção as sextas-feiras. Na Semana Santa, jejum e orações.

Mulher especial ensinou aos filhos benevolência, humildade e respeito à natureza. Minha avó seguiu seus passos. Devota de Sant’Ana, todas as noites tirava o terço e cuidava do altar de padroeira de Saboeiro, na Igreja Matriz.O uso das ervas para curar doenças mais a aproximava de sua mãe, além da arte de bordar.

Vó Mundinha não era de acreditar em adivinhações. Ela dizia que o futuro a Deus pertence e cabe somente a Ele saber o que vai acontecer. Pode até ser, mas a clarividência chegou a sua vida sem que ela entendesse. Já mãe de cinco crianças vivas, a mais velha morrera com dois anos de idade, vó Mundinha engravidara do sétimo filho aos 36 anos, sete anos após o nascimento da caçula. Os dois últimos partos haviam sido complicados e ela quase morrera, especialmente no de minha mãe. Foram horas de agonia e dias de incertezas.

Temendo pela saúde da esposa, vô Manoelito a trouxe a Fortaleza para ser avaliada por uma equipe de médicos. O ano era 1945. Minha avó foi levada a uma médica armênia, muito conhecida na Capital por sua atuação na área de obstetrícia e ginecologia. Horas de conversa, exames, medos e incertezas por parte do casal, que se fazia acompanhar por uma irmã de meu avô. Alívio. A médica garantiu que o feto estava se desenvolvendo e que a futura mãe estava muito bem.

Antes de o casal sair do consultório, a armênia olhou para vó Mundinha e disse com voz mansa, porém segura:

- A senhora vai ter um menino, que muito vai amá-la. Essa criança se tornará homem, será o seu grande conforto na velhice. A senhora vai morrer em seus braços.

Pouco falava ela sobre o encontro com a médica armênia. Talvez por não querer mudar suas convicções, mas o fato é que o menino temporão tornou-se médico e participava ativamente da vida da mãe. Conforto não faltou àquela senhora encantadora, firme e meiga. Por quase 20 anos lutou contra a angina e problemas pulmonares.

Aos 89 anos, 54 anos após aquela premonição, nos braços do tão amado filho, despediu-se dessa vida e retornou a pátria espiritual.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Noites sem cor

Noites sem lua me assustavam. A imaginação me levava a crer que as assombrações, à espreita, aguardavam para atacar. Parecia eu uma vivente medrosa. Muitos padres nossos e ave marias debulhados debaixo do lençol para espantar os fantasmas que teimavam em amedrontar o sono em pesadelos de assassinatos, brigas, vidas inexplicadas. À mãe, cabia velar o sono com histórias de cinderelas, gato de botas, reinos encantados.


Ainda menina pequena, tentei fugir da escuridão e enfrentar esse perigo contagioso. Madrugada adentro, a casa se iluminava com a chama da lamparina. O problema é quando precisava passar a noite sem cor na casa de amigos, parentes. Era uma dor. Carregava na bagagem o medo, vergonha e algumas velas para alumiar a imaginação. Encabulada, ensaiava a falação sobre dormir no claro. Buscava Manuel António Pina para justificar a situação constrangedora. “Seria capaz de não ter medo de nada, nem de algumas palavras juntas?”


De todas as muitas, alegres e difíceis situações vividas na infância e adolescência, a mais constrangedora que a imaginação me permite encontrar no baú das lembranças foi uma noite de festas em Aiuaba. Cidade lá do sertão dos Inhamuns que acolheu meus pais como uma mãe adotiva que escolhe a criança para amá-la por toda a sua existência.


Ainda se achegando à cidade, meu pai construiu um pequeno apartamento para seu conforto e de minha mãe. Nas visitas que fazíamos, eu e meus irmãos, sempre acompanhados dos primos e primas, éramos arranchados nas casas dos amigos.


Em um dezembro da década de 1980, o forró corria solto no salão paroquial. Dança, conversas soltas, paqueras. Lá pelas 2 da madrugada, o cansaço toma conta do corpo. Hora de dormir. Eu e minha prima Adailta fomos para a residência de um casal amigo de meu pai. Armamos as redes no quarto. Pouca intimidade tínhamos com os anfitriões. Primeira vez de hospedagem na casa. A luz acessa na sala de visitas dava-me o conforto do sono sem sobressalto. Doce ilusão.


Foi só fechar os olhos e... pronto. Energia acaba. Maldita usina de Paulo Afonso. Vez ou outra, o gerador pifa e a eletricidade vai embora. Desespero. Num só pulo, estou ao lado da salvadora bolsa de bagagens. Amedrontada, tateio a procura da vela. Alívio. Lá está o maço encostadinho da caixa de fósforos. No desespero, acendo duas de uma vez só. Para garantir que o quarto continue alumiado até o dia raiar.


Satisfeita, deito-me. É quando Adialta, que acompanha a arrumação, acaba com a festa.


- Pra que as duas velas?”, dispara


- Ora, para quando uma acabar, a outra continuar iluminando”, responde no alto de minha sabedoria


- Avisa a uma delas para continuar acessa, já que elas foram acessas juntas, devem apagar juntas”, brincou Adailta e foi logo se enrolando e dormindo.


Pra que aquela observação? , pensei eu, que fiquei o resto da madrugada vigiando as chamas das velas.


O medo do escuro da noite só foi embora após anos de análise. Não sei como chegou e nem como partiu. Simplesmente, sumiu.

domingo, 11 de setembro de 2011

Histórias de Trancoso?


Em Saboeiro, coisas aconteciam que mais parecem histórias de Trancoso, como diria minha mãe. Numa terra tostada de sol e tintas de sangue, de homens e mulheres castigados, de pessoas mais duras que as pedras dos seus lajedos, estes fatos se transformaram em lendas, folclore. Tudo o que vi na minha infância e senti se refugia no fundo da sensibilidade, permitindo, no dizer de José Lins do Rego, “que a narrativa corra, como em leito de rio que a estiagem secara, mas que as águas novas encham, outra vez, de correntezas”.


Histórias de almas penadas, botijas, de amores proibidos, brigas de famílias, de homens embrutecidos, davam-me a sensação de espanto, fuga à realidade. As que mais excitavam a minha imaginação eram as contadas por meu tio Valdizar, que não se cansava de me relatar casos de catalepsia. 


Contava meu tio que a Serra do Flamengo, localidade afastada da cidade e de difícil acesso àquela época, viveu a dualidade dos sentimentos: dor, saudade, medo e fatos hilários. Atraso e crendices alimentavam seus moradores. Manhã de uma sexta-feira na década de 1950 chega a notícia da morte de uma mulher de 70 anos, aparentemente sem doença. Teria sido uma ataque cardíaco fulminante. 


A parentada e amigos correm para velar o corpo. O caixão no centro da sala de visita da casa, de porta e janela. As mulheres rezam, fazem coro. Os homens, conversam no terreiro, contam causos à espera do tempo. 


Choro e ladainhas cortam a noite. O breu toma conta do lugar. A luminosidade somente pelas lamparinas. Lá pelas 11 horas da noite, um dos mais chegados da família se aproxima do caixão e percebe algo estranho. Chama o filho da mulher e dispara:


- Cumpadre, dona Raimundinha está se mexendo


- Que é isso, amigo. Minha mãe está mortinha”, responde o sofrido filho.


Experimentado pela vida, o homem se afasta intrigado. Minutos depois, alvoroço. A mulher se levanta de repente e senta no caixão. Desvario. Homens, mulheres, crianças e velhos vivenciam o que diz o ditado popular: “cada um por si e Deus por todos”. Desatino. Gente pulando a janela da casa, terços perdidos na correria, mulheres se atropelando com crianças, velhos tentando alcançar os roçados. 


A mulher fica sozinha. Ninguém para libertá-la dos crisântemos que enfeitavam o seu corpo inerte no caixão. Somente com o dia claro é que a parentada se aproxima da casa para tomar ciência do que acontecera. Depois do susto, alegria por ter a matriarca de volta.


Casos jocosos não são prioridades do povo simples do sertão. Recentemente, assisti, em Fortaleza, a um fato que se não trágico seria engraçado. Um homem fora apresentado a um defunto durante o velório.  


Um filho dolorido com a morte do pai, recebia os cumprimentos dos amigos horas antes do sepultamento. Ao receber o abraço de um amigo, o levou para perto do caixão e foi logo dizendo, pesarosa: 


- Paizinho, esse é o fulano de tal, que tanto o senhor queria conhecer”.

O jovem levanta o véu que cobria o rosto e mãos do morto para que o amigo saudasse o seu querido pai. O pobre rapaz, pálido de surpresa e medo, recuou, sem saber o que dizer.

Em pensamento, sugeri eu ao amigo que deixasse as formalidades do momento e falasse do prazer em conhecê-lo. Poderia até travar um monólogo amigável, relatando casos vividos com o filho do homem. Seria agradável a família enlutada.



terça-feira, 6 de setembro de 2011

Amor à Pátria!

Alvorada festiva anuncia o dia especial. A cidade acorda cedo. Burburinho de crianças correndo ladeira acima em direção ao Grupo Escolar Olavo Oliveira. As mães, socorrendo os mais atrasados, preparando o café da manhã reforçado. Os homens formam rodas de conversa nas praças. É um vai-e-vem de carros, cavalos, algumas poucas motos. As professoras carregam, orgulhosamente, as fantasias ricamente produzidas pelas costureiras da cidade.

Lá em casa, também levantamos cedo. Ao contrário do restante da população, não estou nem um pouco entusiasmada e o banho com água gelada para despertar só piora o mal humor. E a roupa quente de brim azul escuro, sandália frouxa no pé miúdo, são prenúncio de que aquele será um dia difícil. Para minha irmã, a glória. Ela será dona Leopoldina, a Imperatriz do Brasil.

No entender de meu irmão, mais um momento de farra. Depois de meses de ensaio, vai tocar clarinete por mais de três horas seguidas. Coitado, não sabe o que o espera. Aliás, ninguém em Saboeiro poderia prever uma festa cívica tão bonita. O povo inteiro se aglomera nas proximidades do grupo escolar, acompanhando o perfilamento dos alunos. Os mais altos na frente. Os baixinhos atrás.

Naquele 7 de Setembro, desfilei no pelotão das Bandeirantes, numa referência aos sertanistas de São Paulo que penetraram os sertões brasileiros em busca de riqueza mineral. Ficava eu à frente do grupo ao lado Dolores. Acho que fomos escolhidas por ser eu sobrinha e ela enteada da diretora.

Sol alto, calor infernal anunciam que já passa a hora do desfile. O toque dos tambores anuncia o início da marcha. Lá vamos nós ladeira acima, ladeira abaixo batendo os pés no mesmo sonambúlico compasso. Suor pingando, pés maltratados pelas pedras portuguesas, sede, muita sede. Nada de olhar para os lados. As professoras, sob orientação da diretora, vigiavam a todos. Era o quartel ao ar livre, sob a complacência dos pais orgulhosos com os filhos sofridos e doloridos.

Vale tudo pela pátria. Não, não nego o meu patriotismo, respeito e amor ao Brasil. Mas aquilo era tortura. Saboeiro, cidade perdida no sertão cearense, não seria cobrada pelos militares se poupasse o futuro da Nação. Uma, duas, três horas de marcha e ainda fazendo coreografias. Não escaparam nem mesmo as ruelas. O pior foi subir a ladeira do pecado. Íngreme e cheia de buracos, maltratava até os mais fortes e calejados pés. Já não agüentava mais. No alto dos sete anos, meus pensamentos viajavam para longe. Como me libertar daquela situação sem castigos.

Chegamos à praça Monsenhor Manoel Cândido. Ponto alto da festa. Dom Pedro I, barba e costeletas pintadas com carvão, surge imponente em seu alazão vestindo uma capa dourada. Mais um mentira da história reproduzida durante anos pelas escolas Brasil afora. Naquela tarde de 7 de Setembro de 1822, o futuro Imperador parou às margens do riacho Ipiranga para aliviar a dor de barriga. Ao ler as cartas de sua esposa e futura imperatriz Leopoldina e de José Bonifácio, sobe em seu pangaré e declara a independência do País.

Voltemos a Saboeiro. Na rua Visconde do Icó, olhando para o rio Jaguaribe, surge o nosso imperador. Expectativas. O estudante de 15 anos empunha a espada e grita “independência ou morte”. É o grito de liberdade. A liberdade de crianças estropiadas da marcha cívica. Saio em disparada e sou acompanhada pelo pelotão das Bandeirantes e de boa parte dos alunos, que acreditam ter acabado o desfile. 

Foi um Deus nos acuda. Em casa, reprimendas, castigo. No Grupo Escolar, repreensões, censura. Não me arrependo de ter me rebelado, na inocência de criança, contra a repressão de adultos a quem admirava e continuo respeitando e amado. Ainda hoje, não gosto e não costumo acompanhar o desfile de 7 de setembro.

Um poema de Olavo Bilac

A PÁTRIA
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha…
Quem com seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o sue esforço, e é feliz, e enriquece!
Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!



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