domingo, 29 de maio de 2011

Desafios

Nos últimos dias tenho sentido saudade. A saudade de Pablo Neruda, de amar um passado que não passou, de não ver o futuro que nos convida. Saudades de Márcia, de seus desafios e exigências. Pessoinha difícil de compreender, diria minha mãe. A conheci lá atrás, na adolescência. Encontro meio desencontrado. Esbarramos-nos. Ela correndo para fazer algo que, dizia, não poder esperar, e eu tranquilamente andando para desanuviar da prova de matemática, que me havia tirado o sono e sossego na véspera das férias escolares.
 Márcia é assim. Sempre apressada à procura de algo. Ninguém a alcança. Não permite se resumir como Clarisse Lispector e não se soma. Talvez viva os devaneios de Florbela Espanca, sempre à espera que alguém leia os seus sinais e a acolha. Quando alguém tenta segurá-la, voa. Ainda jovem sonhava com o tablado. As 15 anos integrava grupo teatral em Recife. Pensava na Broadway, sucesso, fama.

Nascida na zona da mata pernambucana e criada na capital, se desesperou quando chegou em Saboeiro pela primeira vez. Ralhou com o irmão por tê-la levado a um lugar tão atrasado. O que discordo. Era uma cidade cheia de vida à espera de ser desbravada, que entrassem em seus mistérios.

Estava sempre desafiando as pessoas, com aquele olhar penetrante. Antipatia mútua nos cercava. Quase não nos cumprimentava. As férias já acabando e fomos aos Caldeirões, balneário abençoado pelo rio Jaguaribe a dois quilômetros da cidade. Márcia resolve me provocar. Convida para pular de uma das pedras mais altas do lugar em direção ao poço mais profundo. O medo toma conta do meu ser, mas não podia deixar aquela espevitada me vencer. Aceito e quando me dou conta estou lá embaixo, tentando submergir. A raiva invade  o meu ser enquanto ela ri do meu atrevimento. Decidimos desvendar as locas do poço. Nadamos a manhã inteira, nos desafiamos outras vezes. Nascia uma grande amizade de aventuras.

Em Saboeiro, a primeira de tantas. Na última, já se vai mais de duas décadas, cruzamos as Minas Gerais, de ônibus, trem maria-fumaça.  Percorremos as cidades históricas em mais de uma semana. Nas ladeiras de Ouro Preto, muitas discussões. Eu, querendo conhecer todas as igrejas. Ela, as minas de ouro e pedras preciosas. O aconchego voltou somente em Sabará, com a promessa de entrarmos no acordo sobre os passeios.

Vinte dias antes, estava eu cruzando a Argentina, numa viagem pelas principais províncias daquele encantador país até Buenos Aires. Na volta, serras gaúchas. Numa noite de frio em Gramado, a localizo, por telefone, no Pantanal. Marcamos encontro na capital mineira em cinco dias. Muitas lembranças da garota alta, morena, cabelos e olhos pretos, voz forte e determinada. Em São João Del Rey, cansadas da viagem, resolvemos nos separar. Voltei a Belo Horizonte. Ela seguiu para o Rio de Janeiro e de lá Nova York. 

Márcia estudou teatro em Nova York, concluiu, com louvor, a Faculdade de Medicina de Recife. Buscou o seu caminho em viagens a Europa, Ásia, Américas. Encontrou na África, onde hoje integra a organização internacional Médicos Sem Fronteira. Trocou o luxo, sucesso nos tablados pela ajuda humanitária na Costa do Marfim.

Há muito não nos vemos. As notícias vêm por cartas, hábito por nós adquirido ainda na juventude. A tecnologia é pouco usada, só para avisar que elas estão chegando. Talvez para não perder o vínculo com o passado. A rebelde e antipática Márcia se transformou na solidária e competente pediatra, mãe de seis adolescentes etíopes, adotados ainda crianças. Não sei se sente falta dos aplausos da platéia, mas é realizada com a vida de doação.

Na madrugada de sexta-feira passada fui surpreendida com telefonema. Era minha amiga. Queria falar sobre o blog, tantas coisas para conversar e ela rindo das aventuras de criança. Matamos a saudade, pedi para contar a sua história. Com uma condição, exigiu. Que lembrasse do que ensina Gabriel Garcia Marques de que “a vida não é o que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como a recorda para contá-la”. Pois é, Márcia, essa é a história que recordo.


quinta-feira, 26 de maio de 2011

Instrumento brilhantoso


O ano era de 1941. A cidade em festa aguardando os ilustres convidados. O interventor Manoelito, cheio de orgulho, circulava de mãos dadas com a sua Mundinha por entre os saboeirenses. Tapinhas nas costas, sorrisos e cumprimentos enquanto não chegava a hora da cerimônia. As mulheres com as roupas de domingo, sapatos de salto alto e chapéus tentavam acompanhar as crianças que corriam de uma lado para outro, fazendo a maior algazarra.

O sol era de rachar o quengo. Não havia uma lasca de sombra. Mas ninguém se importava. Saboeiro estava inaugurando o campo de aviação e receberia pelo menos oito aeronaves diretamente da Capital. Elas levariam o interventor do Ceará, Menezes Pimentel, deputados, alta autoridades do Judiciário, até o bispo diocesano e um comendador casado com a irmã de Manoelito. O interventor local pertencia a uma das mais tradicionais famílias da região, com força política e econômica.

Nas primeiras horas da manhã, o campo de aviação, distante três quilômetros da sede municipal, já estava apinhado de saboeirenses, sedentos por conhecer a mais importante invenção do homem. E para orgulho daquela gente, pelo brasileiro Alberto Santos Dumont. “Ou homem sabido”, disse o agricultor João Maciel após uma aula improvisada no meio da estrada sobre o invento e seus benefícios para a humanidade.

Somente às 11 horas, lembram os mais antigos do lugar, a multidão avistou o primeiro avião. Admiração e perplexidade foram os sentimentos daquele gente ao se deparar com a máquina voadora. Muitos temiam chegar perto, outros faziam plano de um dia embarcar em uma delas rumo a Iguatu. No primeiro momento a criançada se escondeu atrás dos pais com medo de ser por ela engolida. Depois da quinta ou sexta aeronave aterrissar a meninada já fantasiava com o “brinquedo”.

Os discursos se alongaram por mais de duas horas; a população cansada e faminta não agüentava mais. Queria o almoço prometido pelas lideranças políticas. Lá pelas tantas, com a barriga anunciando que já passava a hora da comida, o barbeiro e sacristão da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, Braz Jorge, aproximou-se da esposa, dona Zefinha, e saiu com essa pérola sobre o avião: “vixe, mulher, que instrumento brilhantoso, parece que foi feito de gordura de porco”.

Aplausos, vivas e lágrimas encerram a solenidade de inauguração do primeiro campo de aviação dos Inhamuns. Vale ressalta que nunca mais recebeu tantas aeronaves em um só dia como naquela manhã de 1941. Convidada para o almoço, toda a cidade se dirigiu ao mercado público. Mesas ricamente dispostas no meio da rua. As autoridades ficaram em um lugar reservado à sombra. Enquanto aguardava ser servido, Braz Jorge olhou para a torre da igreja e avistou o galo de aço colocado pelos portugueses na colonização da então vila de Saboeiro, no fim do século XVIII. Entre admiração e fome, afirmou convicto: “Zefinha, se esse galo tivesse intestino, cantaria”. 

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Novo olhar!


Rita é uma dessas mulheres que não teme a Felicidade. Está sempre se esquivando do sofrer. Os problemas, enfrenta com a sabedoria conquistada em anos de embates, vitórias e muitas derrotas. A mais difícil, a perda do filho de 38 anos, assassinado em 1998. Conhecemo-nos naquele ano, em meio a sua dor.  Pautada para mais uma reportagem sobre o drama de parentes da violência esbarrei naquela mulher linda, gestos largos, voz baixa e olhar penetrante.  Trocamos algumas palavras. Insisto na entrevista, ela se esquiva. Dias depois, telefone toca. Ela resolve contar sua história de saudade, incertezas na justiça, projetos para o neto, viagens, trabalho, marido.

Mantivemos amizade distante. Alguns telefonemas, raros encontros.
Dez anos depois, contato retomado, invado novamente o mundo de Rita, culpa de várias taças de vinho. Aos 75 anos, está sempre buscando desculpas para a alegria, o bem viver. Viúva há dois de seu querido português Augusto, não perde um minuto na ajuda aos necessitados e dedicação à família.  Está triste, bastam dois minutinhos com a bela e simpática senhora para mudar o humor. A conversa flui.

Os quadros do passado são pintados com ironia, talvez para disfarçar a nostalgia. De família classe média, casou-se aos 18 anos, teve dois filhos, sofreu a humilhação de ser traída. Abandonada pelo marido entrega os rebentos à mãe e embarca rumo ao Rio de Janeiro em uma aventura de 46 anos. De dia, trabalho como secretária de grande escritório de advocacia. À noite, festas, cassino, jantares com os amigos. Em uma dessas noitadas conhece Augusto, travam logo namoro. O casamento de 55 anos é realizado seis meses depois.

Empresário bem-sucedido, o português apresenta um novo mundo àquela jovem encantadora. Luxo, riqueza e amigos importantes. Mas ela gosta mesmo é da clientela de um dos salões de beleza do marido, por ela administrada. Bibi Ferreira, Mieli, Ari Toledo, Agildo Ribeiro e tantos outros artistas brasileiros. Com a maioria mantém a amizade. Só não quis conversa com Maísa.

Ciumenta como ela só, acompanha o marido em uma visita à cantora no Copacabana Palace Hotel. Augusto vai arrumá-la para uma apresentação na TV Tupi. Relembra Rita que foram recebidos por uma estonteante mulher seminua, o que a irritou profundamente. No dia seguinte, recebeu ligação da secretária da famosa cantora pedindo novo atendimento. Não contou pipoca, foi logo disparando impropérios contra a artista. Bibi Ferreira foi avisada do acontecido e ligou para sair em defesa da amiga de Maísa e tomar satisfações. Rita reafirmou as agressões e proibiu as duas famosas de freqüentarem o seu salão.

Assim é minha querida amiga. Não aceita desaforos, nem mesmo da vida. Tem uma maneira simples de encarar os acontecimentos. No álbum de fotos, momentos distintos e uma única mulher. Do passado, guarda a inconseqüência da juventude, amores, liberdade, comprometimento só com os sentimentos. Hoje, a serena da maturidade e velhice. Quem é velha? Rita grita para avisar que não faz parte do grupo da melhor idade. É sempre jovem, no máximo adulta.

Dividindo o tempo entre o trabalho voluntário na periferia de Fortaleza, cuidado com os netos e jantares regados a vinho e boa música, espera um novo amor, um novo Augusto. “Por que não? Estou viva e sempre pronta para a felicidade”, garante ela.  Ainda não encontrou, embora esteja sempre olhando como se fosse a primeira vez.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Vida!


Ensinam-nos que o medo é um sentimento natural e necessário para que sejamos prudentes frente a perigos que possam prejudicar nossa vida. E o da morte?  Segundo Joanna de Angelis, o medo da morte resulta do instinto de conservação que trabalha a favor da manutenção da existência. Acredito que foi esse sentimento que levou Kátia a desafiar o câncer. Durante dez anos, os dois travaram uma luta titânica. A cada batalha, vitórias e derrotas. Alternância de sentimentos. Um dia, certeza da cura, coragem; no outro, desespero, abatimento. Na maioria, solidão.

A minha amiga de infância sempre foi idealista. Construiu uma carreia profissional, casou-se, teve filhos. Uma vida tranqüila, diria eu. Até que surgiram os primeiros sintomas da doença, rouquidão, voz falhando. Numa ensolarada manhã de outubro de 2001, veio o diagnóstico: câncer na garganta. O que fazer? Filhos pequenos, marido iniciando novo empreendimento, ela acabara de aceitar um desafio profissional. A família cheia de planos e projetos.

A primeira providência foi ter uma conversa franca com Deus. O lugar escolhido, o mar, já que a fascina e amedronta. Conta Kátia que ralhou com o Pai, indagou a razão do castigo, questionou Sua bondade, reclamou a injustiça da doença. Foram horas de questionamentos, sem esquecer os xingamentos e gritos até perder voz, o que a fazer calar. Depois, o choro, desespero. Já mais calma e sem nenhuma resposta, precisava decidir o que fazer. A primeira, esconder da família o acontecido. Enfrentaria sozinha aquela via-crúcis.

Aos 37 anos iniciou o tratamento. Quimioterapia, vômitos, dores, indisposição. O pior, a dúvida: quem sairia vencedor. Continuou trabalhando, dando atenção aos filhos, maridos, casa. Escondeu a sua dor da família e conhecidos. Nos momentos mais difíceis recorreu a dois queridos e leais amigos. Com eles chorava o medo da morte, abandono de seus pequenininhos. Em casa, continuava alegre, estressada, mãe, mulher.

A primeira vitória veio quase três anos depois, após cirurgia em São Paulo, procedimento que se submeteu sozinha, sem a companhia de um parente ou amigo. Dizia não querer preocupá-los. Egoísmo? Talvez, responde ela, mas queria poupar os seus do sofrimento. Mais sessões de quimioterapia, remédios fortes e lá estava ela curada. Diagnóstico confirmado. Alegria e alívio.

Quatro anos depois, a vida teima em testar sua coragem e fé. Parece que o câncer se compraz daquela teimosa mulher e volta. Desta vez, nas cordas vocais. Novamente Kátia decide enfrentá-lo sozinha. Desmaios no meio da rua, vômitos à noite, correria ao hospital, profunda tristeza. Em meio à batalha diária o acaso quis ou a vida escolheu que cruzasse o seu caminho um novo amigo, de quem recebeu apoio e incentivo. Diz ela que também muitas ralhações por não compartilhar aqueles tristes momentos. Há um mês, Kátia me ligou avisando que recebera a contraprova dos exames. Estava novamente curada. Agora, diz, é esperar o que a vida lhe reserva. 

sábado, 21 de maio de 2011

Generosidade!


O prêmio Nobel de Literatura Gabriel Garcia Marques diz que não há no mundo melhor e mais belo ofício que o jornalismo. Concordo como o mestre colombiano. Ao jornalista é permitido conhecer pessoas, acompanhar os seus dramas, alegrias, ideais, frustrações.... Em alguns momentos, somos convidados a entrar em suas vidas, participar de suas histórias. Viramos confidentes. Entre uma entrevista e outra nascem amizades para toda existência. E foi o que ocorreu comigo e Angelina.

Conheci a jovem senhora em uma matéria sobre crianças com câncer e o desprendimento de homens e mulheres que doam parte de seu tempo amenizando o sofrimento de famílias com filhos e filhas portadores da cruel doença. Na época, Angelina dava os primeiros passos solidários. Falante, brincalhona, chamou logo a atenção. Pedi uma entrevista. Conversamos por horas sobre o trabalho na instituição, a importância da caridade, o prazer de servir... Perguntas difíceis, respostas rápidas. Uma tarde de aprendizado. No final, estávamos nós rindo, brincando.

Convite para conhecer a instituição. Retorno várias vezes. Ficamos amigas. Admiração mútua. O que mais me chamava à atenção era a sua alegria em meio ao sofrimento. Sobre ela, pouco falava. Pensava eu, deve ser uma mulher muito feliz, ter uma vida de realizações.

Tarde de sábado, festa para os pequeninhos. Angelina anda de um lado para outro. Atende aos chamados das crianças, participa das brincadeiras, serve bolo, guaraná, conversas com as mães. No vai e vem percebo que não sorri. Terminam as comemorações, todos vão embora, ficamos sozinhas. Hora de arrumar a bagunça. A curiosidade, despertada na infância e aperfeiçoada no jornalismo, gritou dentro de mim. O que está acontecendo?, disparei. Nada, respondeu ela, lacônica. Como nada? Insisti. Você é sempre alegre e hoje calada, com olhar triste. Neste momento entrei em seu mundo.

Aos 23 anos casou-se com o primeiro namorado, teve quatro filhos, virou dona de casa. Levava os meninos para a escola, os ajudava nas tarefas escolares, vibrava com as vitórias e sofria as suas derrotas. O mais velho foi aprovado no vestibular aos 18 anos. Seria engenheiro civil.Seria, porque aos 20 uma bala disparada a queima roupa o levou para a pátria espiritual.

Angelina passou quase cinco anos entre delegacias de polícia e reuniões com secretários de Segurança Pública à procura do assassino do filho. Muitos questionamentos. Anos a fio duas perguntas a torturava: quem o matou e por quê? O jovem não tinha inimigo, não era envolvido com drogas, não participava de gangues e não havia discutido com ninguém. No dia do crime o bandido não anunciou assalto ou levou seus pertences. Simplesmente apontou a arma para sua cabeça e disparou.

O reconforto, encontrou na solidariedade. Primeiro, das mães e pais que perderam os filhos de forma brusca e violenta. Depois, nas crianças atendidas pela instituição. A tristeza é amenizada nas vitórias dos pequenos pacientes. Entre lágrimas, a minha querida amiga diz que perdoou o assassino de seu filho, mesmo sem saber quem é. Quando a saudade aperta, ela corre para atender os meninos e meninas que bravamente lutam pela vida.

Naquele dia, seu filho estaria fazendo 28 anos. A prole já está encaminhada. Os dois mais velhos se formaram, casaram. Um é engenheiro. O outro, educador físico, deu a Angelina uma linda netinha. O caçula está com concluindo o curso de Direito. A vida continua. O sofrimento amenizado, mas a saudade continua no coração generoso da mãe.  

sexta-feira, 20 de maio de 2011

É proibido proibir


A revolução cultural dos anos 1960, que mudou o comportamento das mulheres ocidentais, passou léguas de distância de Saboeiro. As “moças de família” continuavam submissas aos maridos, obedientes aos pais e tementes ao fogo do inferno. Acompanhar as 400 ativista de Atlantic City e queimar os sutiãs em praça pública? Vai-te reto satanás. Elas continuavam recatadas, presas aos mexericos e pontos de cruz do enxoval de casamento que dormia por anos nos baú sem nenhuma serventia. Na contramão da luta feminista de Betty Friedan, passavam as noites na soleira da porta suspirando pelo príncipe encantado que nunca chegava em seu cavalo branco. Não era preciso tanto. Podiam vir num jegue. 

A carolice das vitalinas impunha o ritmo das adolescentes. Dançar colado, nem pensar, e nada de namorar na praça. Beijo na boca, quer ser difamada? Banho no rio Jaguaribe estava fora de cogitação para as ‘bem nascidas’. Margarida, a mais velha de seis irmãos, não aceitava imposições. Estudante na capital, chegava à terrinha cheia de idéias e moda. Linda, alegre e cheia de vida, criticava a sonsice das amigas e das carolas.

As férias de fim de ano eram um alvoroço na casa de seu Ribamar e dona Joanita. Benção pai, sua benção minha mãe, pedia Margarida a proteção ao respeitável casal. Filha minha não pode usar vestido curto, fumar ou dançar, bradava aos quatro ventos o reconhecido líder político da cidade. É proibido proibir, retrucava a adolescente, que transgredia as normas da família, ao contrário das três irmãs caçulas, que acatavam todas as ordens sem nenhum questionamento.

Proibida de ir às tertulhas na casa do coronel Sinfrônio nas noites de sábado, Margarida usava artimanhas para enganar os pais e duas tias que se revezavam na vigilância. Quando a família se recolhia, lá estava a jovem pulando o janelão do quarto. Com a sandália nas mãos, corria para a festa. Dançava a luz de lampião horas a fio embalada por Elisete Cardoso, Altemar Dutra, Nelson Gonçalves.

Numa das fugas, foi seguida pelo pai, que lhe deu uma sova no meio do salão. O castigo, um mês sem colocar nem mesmo a cabeça na janela. Margarida cumpriu o castigo. Não reclamou. Estava feliz. Naquela fatídica noite havia firmado compromisso com Oscar. No retorno à Capital, a jovem estava com aliança no dedo e casamento marcado com o único médico da cidade. 

Quase 50 anos depois, a hoje reconhecida artista plástica mora em um sítio nos arredores de Belo Horizonte com o marido. Vez por outra recebe a visita dos cinco filhos, oito netos, duas bisnetas e muitos amigos. A parentada, de vez em quando, troca a mansidão dos Inhamuns pelas festas nas Minas Gerais. Por dias a fio, música e diversão. É proibido proibir continua sendo o lema da rebelde adolescente de 72 anos.    

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A força da amizade!

Diz o  provérbio português que mais vale um amigo na praça que dinheiro em caixa. E quando se tem dois, três, quatro... anjos? Privilegiada, tenho dois. Suzana, irmã de sangue, meu amparo, meu limite e minha razão. Diferentes no temperamento, iguais na vida, nas experiências. Ela brinca que em outra encarnação fui sua obsessora e a levei para o mau caminho. Hoje, tenta me resgatar com conselhos, carinho e amizade.

Mais do que amigas, cúmplices. Na infância, ela encarava minhas provocações com lágrimas, mas sempre parcimoniosa. As chineladas e castigos de minha mãe, na maioria das vezes resultado de minhas transgressões, eram logo perdoados.  Quem não conseguia esquecer era a palmatória, que vivia grudada em mim. Dia sim, dia não, lá estava à danada envernizando as palmas de minhas pequenas e frágeis mãos. Mais isso é outra história. Vamos voltar aos anjos da guarda.

Hoje, confidentes, leais. Passamos dias sem nos ver, mas basta um esbarro para começarem os cochichos pelos cantos da casa. Com um olhar, um riso maroto e lá vamos nós trocando segredinhos, provocando a ciumeira da família e curiosidade em minha mãe. O que essas meninas tanto falam? Sei lá, vó. A senhora não sabe que elas vivem de segredo?, responde minha filha. A dela sai logo correndo para pescar algumas palavras.

Como irmã mais velha tenta impor limites, enquanto eu insisto em ensiná-la a paixão da vida, a irresponsabilidade do querer. Pérola para os amigos, sensata na visão dos parentes, generosa com os próximos, Suzana é paz, tranqulidade. Apesar de eu ser guerra, fogo, ela me acolhe com o sorriso e acalento com o olhar.

Tenho outro anjo, Carolina. Quando a conheci parecia mesmo um ser celestial: cabelos loiros e encaracolados, olhos claros, voz mansa e sorriso sincero. Entre uma carona e outra após plantão de sábado na redação de emissora de televisão nasce uma grande amizade, daquelas que não precisam da presença física ou troca de gentilezas. Dizemos ser sócias. Não nos negócios (que negócios, pobres mulheres trabalhadoras?). Na amizade, cumplicidade.

Está com problema, lá está Carol. Chora o seu choro, ri o seu riso, escuta as lamentações e acalma o seu coração. A filha de dona Glória é assim. Irmã por mim escolhida, imposta. Não aceito recusa. Pessoa de sorte essa tal de Suzete, que reclama de barriga cheia, melhor dizendo, de coração. Neste exato momento tento arregimentar outro anjo. Melhor dizendo um cãozinho chamado Eri.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Vida de ilusões!

Na infância tive muitos professores. Nenhum doutor, mas todos diplomados pelas experiências, sábios que aprenderam o segredo de bem viver. Um deles foi minha bisavó Flora. Mulher miúda, de estonteantes olhos azuis e sorriso fácil. De pouca conversa, passava a maior parte do tempo entre um ponto e outro do croché e o terço para Nossa Senhora da Purificação proteger os seus e os dos outros. Não gostava muito de se meter na conversa alheia, mas, de vez em quando, metia o bedelho, mas só quando necessário, costumava dizer.

Numa tarde de verão, calor de rachar o juízo, lá estava a bivó sentada em sua cadeira de balanço na porta do oitão. Ouvia atentamente as meninas traçarem planos, desfilarem sonhos. As adolescentes, entrando no estranho mundo da paixão, falavam em casamento, filhos, casa. As mais novas, aí me incluo, ouviam atentamente. Planos feitos, decepções choradas e, de repente, dona Flora dispara: quem ama é sempre feliz. Confesso que na época, no alto de meus sete anos, não compreendi. Perguntei o que ela quis dizer e tive como resposta uma tapa na mão acompanhada de sorriso.

Pensando naquela senhorinha, de pouca instrução, lembrei-me de Bruno e senti pena por não ter conhecido bivó Flora. Certamente não estaria estranho e só jogado no luxuoso apartamento esperando o milagre da vida. Rico e bem sucedido, conhecido e reconhecido médico realizou a promessa feita há quase 20 anos quando arribou do seu torrão natal rumo ao Rio de Janeiro, com três mudas de roupa, um tênis surrado, alguns trocados no bolso e muita vontade de vencer, de conquistar um lugar ao sol.

Na capital fluminense, estudou com muito sacrifício, concluiu a duras penas o curso de Medicina. Casou-se, teve filhos, traiu, descasou e novamente apaixonou-se. Fernanda, também médica, vaidosa, fútil e vaidosa conquistou seu coração. O sonho da alma gêmea logo virou pesadelo. Após sete anos de relacionamento, vivem o pacto do casal perfeito. Em casa, discussões, cobranças, exigências. A vida social é um mar de rosas. Atenção, sorrisos e agradecimentos. Mas estão tão afetos ao desamor que não conseguem trocar um olhar de carinho.

Ela vive a futilidade de roupas caras, jóias, posição, carros de luxo, viagens, academia. Ele divide o tempo entre a clínica que montou em Botafogo, o hospital onde presta serviço voluntário duas vezes por semana e reuniões. O casal não perde um evento. Está sempre nas colunas sociais, com o sorriso engessado e os olhos entristecidos. Não tem a coragem de abandonar a prisão que construíram.

Talvez se Bruno tivesse ouvido aquela velha senhora de quase 90 anos, abriria a janela e se apresentava para a vida igual ao poema de Thiago de Mello. “Pois aqui está a minha vida. Pronta para ser usada. Vida que não guarda e nem se esquiva, assustada. Vida sempre a serviço da vida. Para servir ao que vale a pena e o preço do amor. Ainda que o gesto me doa, não encolho a mão: avanço levando um ramo de sol. Mesmo enrolada de pó, dentro da noite fria, a vida que vai comigo é fogo: está sempre acessa”. 

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Aprendendo a nadar

Somos três os filhos de minha mãe. Quando atravessávamos o patamar da Igreja de Nossa Senhora da Purificação, no início da manhã, a prole se multiplicava em oito, dez. Sobrinhos e filhos de primas e amigas. Era uma romaria de crianças descendo as ladeiras de Saboeiro em direção ao rio Jaguaribe. Algazarra durante todo o percurso. 

Na ida, planos do nadar até a pedra tal, do mergulho mais demorado. À volta, alegrias das conquistas. Consegui chegar primeiro a loca do peixe, fiquei submerso por mais tempo, nadei com mais elegância, quase não bati os pés. Era um alvoroço de chamar a atenção. Lá vai a Lucinha com a garotada para o rio. Os meninos levando câmaras de ar e as garotas cabaças amarradas em uma corda.

Na infância, eu era a mais atrevida e impulsiva dos filhos de dona Lúcia. Aos oito anos já desafiava a correnteza do Jaguaribe, para desespero de minha mãe. Foi necessário ver a morte de perto para respeitá-lo e aceitar os meus limites. Sofri quase dois afogamentos – na primeira vez fui salva por uma tia-bisavó e na outra por minha irmã Suzana – além de ser arrastada pelas águas. Desta vez, o socorro veio no pé oiticica, estrategicamente localizado na margem direito de um dos braços do meu adversário.

As águas caudalosas fascinavam a criançada e causavam medo nos adultos. Menos em minha mãe, que diariamente nos levava ao poço Remanso para aprendermos a nadar. Do alto de uma grande pedra, na beira do rio, ela montava o seu posto de observação. Não perdia uma criança de vista. A cada 15 minutos, ouvíamos os seus gritos. Suzete, Carlinho, Adailta, Eloá, Marcus, Gotardo, Magda, Liduina ... e por aí vai.

Antes de entrar na água o sinal da cruz e pedidos de proteção ao anjo da guarda. Em seguida, amarra as cabaças na cintura e se joga na água. Era um vai-e-vem de braçadas, mergulhos, risos. Dona Lúcia dizia que toda criança deve aprender a nadar para conhecer Jaguaribe. Como saber o que há na outra margem do rio se não atravessá-lo a nado?

Acho que essa filosofia se deve ao fato de ela não saber nadar e nem mesmo mergulhar. Para alguns, uma mulher maluca. Levar um magote de meninos e meninas para aprender a nadar sem garantir socorro em momentos de aflição. Para nós, exemplo de coragem e fé em Nossa Senhora da Purificação que protege os seus. Não sei quem tinha razão, mas todos nós aprendemos a nadar e com exceção da espevitada e atrevida Suzete nenhuma outra criança se afogou ou foi arrastada pelas correntezas.

sábado, 14 de maio de 2011

Pedido de casamento



Qual a garota que não sonha acordada com pedido de casamento, daqueles que o namorado a leva para um jantar romântico, declarações de amor? Muitas suspiram à espera desse momento especial, que muitas vezes não chega nunca. Algumas envelhecem na soleira da porta, perdidas em ilusões e desilusões. Pois bem, Martinha, com seus 25 anos, dando o “primeiro tiro da macaca”, como se diz lá por Saboeiro quando a moça chega solteira a essa idade, já estava se preparando para condição de futura vitalina, daquelas que “bota o povo, tira o povo, moça velha não sai mais do caritó”, como diz a cantiga popular.

Quis o destino ou o acaso outro futuro para ela. Uma semana após completar as 25 primaveras não é que Martinha conhece Pedro, rapaz bonito, alto, olhos verdes penetrantes e alegres, cabelos pretos encaracolados, uma cova no queixo. Parecia astro hollywoodiano. Além de tudo, culto, educado e com apenas 20 anos. Logo no primeiro encontro, em uma festinha na casa de amigos, trocaram olhares, algumas palavras. No dia seguinte, encontro marcado, início do namoro. A paixão chegou de forma devastadora. Eles não se desgrudavam.

A garota não era de perder tempo. Pouco mais de um mês de juras de amor, ela o pediu em casamento. Não deu chance de Pedro se recuperar do choque. Foi logo fazendo promessas de que teriam um canto para morar, não precisariam se preocupar com nada. Seu pai daria um jeito. A festa de casamento ficaria a cargo da família da noiva. A lua-de-mel resolveria depois. Assustado, ele disse sim.

Martinha se cercou de todos os meios para impedir o rapaz de desistir do casório. Foi logo comprar as alianças. Na noite seguinte, as entregou ao noivo. Precisava convencer os pais, seu Osório e dona Fernanda. Aproveitou que o pai estava lendo o jornal para comunicar a decisão. Chegou de mansinho e foi logo disparando que naquela noite um rapaz viria à sua casa pedir-lhe em casamento e queria que seu Osório não só aprovasse como também desse ao casal um apartamento como presente. Não esperou resposta. Foi logo o beijando e agradecendo por seu tão bom e compreensivo. À mãe, sugeriu um jantar simples, mas agradável.

À noite, Pedro foi apresentado aos pais de Martinha. Travaram uma conversa amistosa, porém desinteressante. Durante o jantar, a garota aflita esperava o pedido, que não saia. Agoniado com a situação, o rapaz não saboreou o peixe cozido no capricho. Encabulado só pensava em fugir daquela casa, mas a garota estava decidida a se casar com o homem de sua vida. Vendo a insegurança do futuro marido, disparou: vai ou não me pedir em casamento? Pedro gaguejou algumas palavras, falou de seu amor e então fez o pedido quase em sussurros. 

Aceita a proposta, trocaram alianças e saíram quase correndo da sala de jantar. Ele precisava avisar aos pais que residiam no Rio Grande do Sul. A sua mãe, indignada com a situação, disparou algumas reclamações, mas o filho estava decidido, viveria o resto de sua vida com aquela maluquinha.

O final da história não é bem o que planejou o jovem casal. Casaram em uma linda cerimônia acompanhada pela parentada e amigos, tiveram filhos, realizaram sonhos, brigaram e se amaram muitas vezes. Vinte anos depois, o amor acabou. Com os filhos crescidos, foram em busca de outras ilusões e de viver novas histórias de amor.

terça-feira, 10 de maio de 2011

No escurinho do mercado!

Noite de domingo. Missa rezada e a criançada se reuniu no espaço aberto do mercado público. Cada uma levando sua cadeira de couro e tamboretes. A aflição era grande. Pela primeira vez na história da cidade seria apresentado um filme. A menina Joana, de sete anos, virou para o vizinho de lugar, Ludogênio, de oito, e disparou a pergunta: “o que é mesmo que o padre vai mostrar?”. Ninguém sabia. Nos anos 70 do século passado em Saboeiro não tinha televisão e muito menos cinema. O único meio de comunicação era o rádio. As peças de teatro, adaptadas por algumas professoras mais letradas, recebiam o nome de drama. Ah, isso é uma outra história.
Minutos de expectativas e lá vem aquele homem de dois metros de altura, fala grossa. As mãos imensas, que pareciam querer abarcar o mundo, seguravam um rolo preto e alguma peça que, na época, não consegui identificar. Era o projetor. O padre holandês Geraldo Slag, que estava na cidade há quase 20 anos, fez uma preleção sobre o filme e o cinema. Ninguém prestava a atenção. Todos queriam ver o que apareceria naquele lençol branco. As luzes são apagadas. Começa a música. As crianças menores se assustam, enquanto os “metidos a entendidos”, aí me incluo, tentavam demonstrar tranqüilidade. Aparecem as primeiras imagens. Vicente Celestino, no papel de Gilberto, sofre desde o primeiro take. A platéia se emociona com o jovem que perambula pelas ruas da cidade grande, perde a mulher e se entrega à bebida.
As crianças sofriam muito mais com os problemas na projeção. Parada a cada dez minutos para consertar o projetor.Era uma tortura acompanhar o desenrolar do enredo em preto e branco. E nada de reclamação. Xingar, nem pensar. O olhar ameaçador do padre intimidava qualquer reação. Para desespero dos espectadores, a fita quebrou no finalzinho da história. Aborrecido, padre Geraldo bobinou a fita, desligou o projetor e saiu, altivo, carregando as nossas ilusões. Foi a primeira e última sessão de cinema no mercado público de Saboeiro. Saímos sem saber se Gilberto teria se libertado da vagabundagem e se tornado um grande cantor.
O filme “O Ébrio”, de Vicente Celestino, lançado em 1946, foi a minha primeira experiência no cinema. Diga-se, de passagem, frustrante.

domingo, 8 de maio de 2011

Amor de mãe!

Dona Lúcia, minha mãe

Inverno pesado no Ceará. Rios transbordando, aguaceiro por todo lado. Sitiantes correndo para salvar às réis que caiam nas valas abertas pelas águas. Naquele ano, Deus mandou mais chuva do que se havia pedido. 


Numa noite de tempestade, trovão estrondando a terra e os raios cortando o céu de Saboeiro , a jovem Lúcia, grávida de sete meses, entrou em trabalho de parto. Ela tinha, ainda tem, pavor às trovoadas. Na cidade não havia médicos, hospitais. Apenas uma parteira. A família achou melhor não arriscar. Seus pais, Manoelita e Mundinha, embarcaram com a filha rumo ao Iguatu no Jeep Willys, da família.

Péssimo motorista, seu Manoelito não livrava um buraco da estrada carroçável. A cada solavanco, gemidos de Lúcia. Dona Mundinha, desbulhou o terço umas 50 vezes. Entre as ave-marias e os padres nossos, carinho na filha. A aventura continuou por quase quatro horas. No início da manhã nascia o rebento, prematura, pesando 2,5kg e com 32 centímetros. No hospital, alívio. A caçula de três filhos do casal Chico e Lúcia recebeu como primeiro alimento, chá, dado pelas freiras do hospital. Parece que a beberagem fez mal. Não se sabe, mas minutos após ingeri-lo a criança começou um choro de seis meses.

No hospital não havia incubadora. O negócio era enrolar a bichinha em panos mornos e envolvê-la nos carinhos da mãe, que passava os dias e noites com a criança nos braços.  Uma semana após o nascimento, tempo de voltar para casa. A família pegou a estrada de volta, sempre acompanhada de muita chuva. O avô feliz, brigando com os buracos. A viagem durou quase dois dias, interrompidos por riachos que cortavam a estrada. A travessia do rio Jaguaribe, de canoa, com o sol nascendo. A criança, bem agasalhada, para não pegar friagem.

Mas o desvelo da mãe não a libertou de meses de sofrimento. A menina, parecia com uma “uma ratinha”de tão pequena. Chorava dia e noite sem parar. Os parentes pensavam que era surda e cega, pois não atendia aos chamamentos e não acompanhava os gestos. Recusava alimentos. Aos seis meses, pesava dois quilos, havia perdido 500 gramas. A parentada mandava a mãe desistir da criança e “deixar o anjinho morrer”. Lúcia continua incansável nos cuidados à criança. Buscavam orientação de médicos da região. 


Nos momentos de desespero, apertava a filha no peito e rezava, pedindo a Deus socorro para a filha. Não a morte, ou descanso. Mas a vida. Ela já tinha um casal de filhos – de três e dois anos – que ficou aos cuidados do marido e de duas irmãs. Com a filha no colo, ouvia as missas na sala de entrada da casa, que fica ao lado da Igreja de Nossa Senhora da Purificação. 

Numa quente manhã de setembro apareceu lá pelas bandas de Saboeiro um rezador, com fama de fazer curas. A jovem mulher mandou chamá-lo e foi logo explicando que havia levado a filha a vários médicos e nenhum diagnóstico. O velho examinou a criança e deu a receita: leite de jumenta e chá de amburana rasteira. Seu Chico recusou-se a acreditar naquele homem sem cultura. Lúcia foi então à procura do sogro que mandou amarrar o animal no pé de cajarana no quintal da casa do casal. Quem tiraria o leite? O serviço ficou para o cunhado José Robério.

Nos primeiros dias, a menina solvia o leite em uma colher de café. Depois passou a de sopa, uma chuquinha, mamadeira. Três meses depois estava engatinhando. Com 11 meses deu os primeiros passos. Não era surda e nem cega. Choro, quase não mais se ouvia naquela casa.

Ao longo dos anos, dona Lúcia continuou cuidando da filha. Chorou as suas dores, riu as suas alegrias e vitórias. Hoje, aos 72 anos, continua zelando pela menina “raquítica”que teimava em viver e que renasceu muitas vezes graças aquela mulher de menos de um metro e cinqüenta de altura, olhar doce, palavra mansa e uma fortaleza que faz os gigantes tremerem.

Obrigada, mãe, por não ter desistido!

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Jornalismo imparcial?








Uma das primeiras orientações que recebi ao ingressar no curso de Comunicação Social da UFC foi de que jornalista deve ser imparcial e racional, segurar a emoção, não se envolver com a história que vai contar aos leitores. Sai da faculdade com todas essas normas e procedimentos definidos na minha cabeça. Nada de sentimentalismo. Narrar os fatos com toda precisão, sem nenhum envolvimento ou com uma posição definida sobre o fato a ser registrado. Tenho de ser neutra, qualquer que seja a situação.



Coitada dessa jovenzinha inexperiente. Foi preciso cortar na carne para compreender que não posso ser completamente imparcial. Como pessoa, sou dotada de signos e significados, portanto, incapaz de falar sobre um assunto sem inserir o meu ponto de vista. E essa imparcialidade acontece quando escolho a fonte que acredito ser a melhor e, ao escrever, e coloco as informações que acho mais importantes.

Passei anos nessa luta autofágica. Até que um dia assumi minhas emoções, medos e, principalmente, envolvimento com a notícia. No início da década 1990, em um ano de seca no Ceará, bispos decidiram fazer um relatório sobre a situação e encaminhá-lo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNNB). Para fazer esse diagnóstico era preciso viajar pelo Interior. Como repórter idealista – vale ressaltar que continuo sendo – pedi ao jornal O POVO, onde trabalhava, para fazer as matérias. Decidimos por uma série de reportagem.

Munida com caneta, papel, gravador e uma máquina Olivetti parti com os bispos, cheia de entusiasmo. Não sabia o que me esperava. Uma das maiores lições de vida que o jornalismo proporciona a um ser humano. Nascida e criada nos Inhamuns pensei conhecer tudo sobre fome, seca, sofrimento e que nada disso me surpreenderia. Já havia presenciado homens trabalharem o dia inteiro sob o sol a pique e ter como único alimento feijão com farinha. Nos 15 dias de peregrinação pelo chão rachado do sertão, realmente me deparei com esse quadro, cruzei com homens, mulheres e crianças resignados, com uma fé inabalável em Deus.

O que ainda não sabia era que nesse ambiente de desolação há pessoas especiais. Pois bem. Em um distrito de Quixadá, decidi por não acompanhar a reunião dos bispos com os trabalhadores rurais. Queria ouvir outros depoimentos. Sai por ai, andando pelas ruas de chão batido. Fim de tarde, o sol se preparando para dormir. Passava pelas casas, cumprimentava um ou outro, mas não parava. Após alguns minutos de caminhada cheguei a uma residência simples. Resolvi entrar.

Fui recebida por uma senhora com a aparência de quase 50 anos, grávida, muito magra. Na verdade, tinha menos de 30, mãe de sete crianças. Estava esperando o oitavo rebento. Pensei logo em travar conversa sobre filhos, marido, a vida, trabalho. Tinha a minha personagem. Antes mesmo de me apresentar, ela me sorriu um sorriso aberto e me olhou com uns olhos tão serenos que fiquei entalada, sem ação. ‘Boa tarde moça, o que deseja?’, perguntou-me. Senti vontade de sair correndo, mas o dever me chamava. Respondi baixinho: ‘sou jornalista, gostaria de entrevistá-la’. Ele me mandou entrar, mostrou-me a casa humilde e disse que há dias a família almoçava feijão. E o jantar?, perguntei. Ela e as crianças comiam farinha. Tudo lá era racionado. Mas, e o marido, o que janta. Ela me respondeu: ‘sal. Come sal e depois bebe água porque enche o bucho’. Olhei para ela assusta e cruzei com um olhar tão doce, meigo e sereno que não consegui segurar as lágrimas. Elas rolavam pelo rosto como que pedindo desculpas pela vida que levava na cidade grande, de shoppings, cinema, teatro, almoços e jantares fora. Também por achar que jornalista não tem sentimentos, não se emociona. Naquele dia me libertei das regras do jornalismo. Daquele dia em diante assumi minha indignação com a injustiça, chorei ao ver jovens envolvidos com drogas, solidarizei-me com mães que lutavam para libertar os filhos da violência e criminalidade.

sou parcial, sim!

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Iniciação na política


Não sei se é verdadeira a máxima de que a política está no sangue. Mas filha, neta e bisneta de homens e mulheres de ‘políticos profissionais’ no conceito weberniano, sou apaixonada pelos bastidores políticos, em especial de Saboeiro, minha terrinha. A movimentação da cidade no período pré-eleitoral, o entra e sai de gente lá de casa e no casarão de meu avô, me deixava extasiada. O poder de convencimento ao eleitor pelas esposas, mães e filhas dos candidatos é de impressionar. Elas andavam em bandos pelas fazendas, distritos e povoados fazendo promessas que até elas não acreditavam.


E acorrida pelo voto do analfabeto exigia uma força-tarefa de partidários, servidores contratados pelos partidos e, eu claro, menina metida à gente grande.
Por puro prazer e para acompanhar de perto, bem pertinho, os conchavos, discussões, acordos, lá estava eu ao lado de pai, igual a carrapato. Coitado, além de todas as dificuldades ainda tinha de agüentar um pentelha cheia de por quês, quando, onde, quem? Parece lead de matérias. Acho que para se livrar de mim, ele me deu uma missão. Qualificar eleitores. Com apenas dez anos, trocava os passeios e brincadeiras por uma tarde inteira no cartório eleitoral.


Enquanto minha irmã reclamava daquele ‘castigo’, eu pegava na mão das donas Joana, Rita, Marcelina, seu Pedro, João, Fernando e os ensinava a assinar os seus nomes. O o é uma bola. Muito bem! Agora, vamos fazer o a, é fácil. Repita a bola e puxe um rabinho. Ah, o danado do n é o mais difícil. Vamos lá, a senhora consegue dona Joaninha. Isso mesmo, muito bem. Depois de horas e muitas fichas perdidas, a senhora de 55 anos consegue finalmente assinar o nome. Proto, estava inscrita para receber o título eleitoral. Vamos para outro futuro eleitor. No fim do dia, dores nas costas, que, em alguns momentos, eram utilizadas como mesa para outro analfabeto assinar o nome naquela bendita ficha de inscrição do Tribunal Regional Eleitoral. O sentimento era de dever cumprido.


Ah, os bastidores renovam as nossas energias e quem pensa que a minha participação terminava no cartório, engana-se redondamente. À noite, sentava na calçada ao lado de minha mãe e ficava horas maravilhada com a análise que os adultos faziam do dia. Fulano de tal pediu um poço profundo em troca de tantos votos. E aquele sem-vergonha do vereador x, está comendo dinheiro dos dois lados, e por aí vai... Eu não perdia nem suspiro. Atenta, tentava entender quando os homens definiam as próximas ações. Para renovar as energias e me preparar para o `trabalho político’, banho no rio Jaguaribe. Todas as manhãs, minha mãe levava a criançada – filhos, sobrinhos e filhos das primas e amigas - para aprenderem a nadar. Eram horas de brincadeiras e de desafios. Mas isso é outra história.


Nesta minha iniciação às avessas nos bastidores políticos uma única vez pensei em desistir daquela vida e com a idade de sete anos. E foi por puro medo. No mês que antecedeu a eleição, período em que estavam sendo entregues os títulos eleitorais, um aliado político de meu pai, bate à nossa porta, por volta da meia noite, avisando que o cartório eleitoral estava em chamas. Saímos todos correndo para a rua. A cidade inteira olhava estarrecida para aquela bizarra cena. Antes mesmo de a última labareda queimar todos os documentos, títulos eleitorais, as especulações começaram. Quem teria cometido aquele crime e os mandantes, hem? Noite à dentro, muitas perguntas, várias garrafas de café solvidas entre um cigarro e outro e a fatídica conclusão: perderíamos outra eleição.


Assustada, puxei meu pai no canto da sala e disparei entre soluços. “Pai, desiste. Eles podem fazer o mesmo aqui em casa e o seu candidato ainda vai perder a eleição”. Ele limpou as minhas lágrimas que teimavam em rolar, colocou-me nos braços e sorrindo, respondeu: ‘A gente tem de brigar pelo que acredita. E a política, filha, é a minha vida’. Naquela noite, recebi a maior lição: nunca desistir dos sonhos, mesmo fadados a não serem realizados.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Resposta ao machismo


Em reuniões de trabalho com a presença de pelo menos quatro homens, entre uma decisão e outra, piadas machistas são contadas para aliviar a tensão. Na mesa de bar e em festas de família, inconfidências sobre aquela ‘boazuda’, cujo balanço das ancas é motivo de fetiche para os marmanjos. Homens inteligentes, formadores de opinião não fogem a essa prática equivocada, com raízes na antiga cultura greco-romanas e cultuada em países latino-americanos, a despeito das mudanças de comportamento que vêm ocorrendo.

Ontem, ouviu uma piadinha dessas sem graça, que me preservo ao direito de não reproduzi-la. Logo me veio à lembrança dona Miguelina. Sem nunca ter ouvido falar em Betty Frida ou queimado sutiãs em praça pública, deu uma lição em todos os machistas que mantêm a crença na inferioridade da mulher ou as trata como objetos de consumo. Em meados de 1970 iniciou a revolução feminista nas redondezas de Saboeiro. Acompanhei o desabrochar da valente Miguelina, tentando entender os porquês de cada decisão ser motivo de escândalo na cidade.

Criança metida à psicóloga é o inferno no purgatório, dizia minha tia-avó Lurdes. Hoje concordo com ela, mas no alto dos meus oito anos tentava decifrar Miguelina e Luiz. Ele, homem garboso, altivo e falante. Ela, magra, sempre calada, tímida, cabisbaixa. Pensava eu, o que ele tinha visto naquela mulher tão sem graça. Sempre que os dois visitavam meus pais, corria eu para observá-los. Meses a fio e nenhuma resposta consegui. Até que um dia fui surpreendida por dona Miguelina na cozinha de casa conversando com minha mãe.

 As mãos trêmulas seguravam um copo com garapa. Sorvia a beberagem devagarzinho para se acalmar. As frases eram entrecortadas por soluços. Ela reclamava o marido, dizia não saber por que havia aceitado, anos atrás, o pedido de casamento. Pensava eu, porque seu pai é rico e ele está interessado em seu dinheiro (quanta perversidade na cabeça de uma criança).  Mas, parecendo ter me ouvido, logo respondeu, por amor, o que não a livrou de momentos de amargor, tristezas, solidão.

O pior eram as humilhações.  Luiz namorava a vizinha Ritinha, 20 anos mais nova que a esposa. Bilhetes eram trocados por cima do muro, marcando os encontros. Tudo sobre as vistas de dona Miguelina. Na noite anterior a conversa com minha mãe, ela havia encontrado um colar de ouro 18 guardado em uma das gavetas da cômoda do quarto. De súbito, pensou se tratar de um mimo do marido em comemoração aos 12 anos de casamento, no mês seguinte. Para seu desespero, horas depois cruzou com a moça usando a jóia. Indignada, encheu-se de coragem e foi tomar satisfação com o marido e teve como única resposta que a namorada merecia o presente. Cheio de razão, Luiz a proibiu de se meter naquela história porque era coisa de homem.

O desrespeito do marido a encheu de coragem. Ameaçou ir embora com os filhos e se arranchar na casa dos pais. Exigia que ele acabasse o namoro naquele mesmo dia. Não esperou resposta, foi logo se aconselhar com minha mãe, que, conciliadora, tentou colocar panos quentes. Explicava que a vida em comum não é fácil e a mulher deve perdoar os deslizes do companheiro.Homem grosseiro, Luiz mandou chamá-la imediatamente. Não deu tempo para a mulher se despedir de minha mãe. Foi logo correndo atender ao chamamento do marido. Como não poderia perder “minha paciente” a acompanhei de longe. Ouvi quando ele a proibiu de sair de casa, conversar com as amigas. Missa, só aos domingos e acompanhada dos filhos. Era o castigo por ter se rebelado. Os pais de dona Miguelina ao tomarem ciência dos fatos correram à filha para aconselhá-la a pedir desculpas ao marido.

Para minha surpresa e de toda a cidade, a frágil e sem graça mulher anunciou que estava deixando o infiel marido. Ele, por sua vez, a ameaçou de várias maneiras. A pior delas era abandonar os filhos e a mulher à própria sorte. As ameaças não amedrontaram a minha segunda heroína. Pelo contrário. A encheu de energia para expulsar o homem com uma espingarda, deixada anos atrás pelo sogro.

Dona Miguelina foi a primeira mulher de Saboeiro a se separar do marido e ainda exigir todos os seus direitos legais. Enfrentou com muita dignidade a rancorosa e machista sociedade local. Educou os filhos, todos cursaram faculdades. Dois deles residem no exterior – um é médico em Bruxelas e a outra, pesquisadora nos Estados Unidos.

No ano passado, dona Miguelina partiu para a Pátria Espiritual aos 85 anos com a serenidade de um anjo e a sensação do dever cumprida. Criou, sozinha, os filhos e ainda cuidou do ex-marido quando ficou paralítico devido a um AVC e assumiu a administração das fazendas herdades de seus pais e as do Luiz. Com 70 anos aprendeu a tocar órgão e, aos 80 navegava na internet para se “atualizar sobre o mundo”, explicava. 

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Heroína!

As imagens do povo americano em frente à Casa Branca comemorando a morte do terrorista Osama Bin Landen me remeteram a minha avó Mundinha. Em tempos não muito distantes, famílias da região dos Inhamuns festejam a morte de inimigos. Soltavam fogos, tocavam-se os sinos das igrejas, em casos extremos, jantares eram oferecidos. Em Saboeiro não era diferente. Em uma dessas ocasiões, dona Mundinha, indignada com essa arcaica cultura, revoltou-se e disparou: “Quem comemora a morte de um ser humano, morre um pouco. Não importa o que ele fez ou como viveu. É um filho de Deus, que precisa de reza”.
Tivesse convivido com ela, a escritora Rachel de Queiroz a transformaria numa de suas mulheres singulares. O contexto que a cercou, desde menina, seria pano de fundo. Vó Mundinha nasceu em 23 de dezembro de 1910, numa época em que era feita a vontade dos pais e o juiz da terra intermediava o casamento. Numa época do amor à primeira vista e eterno, retratado pelo poeta José de Alencar.

Mulher forte e religiosa, nascida Raimunda Fernandes Vieira, dedicou toda a sua vida com honestidade, simplicidade e amor à família. Sempre esteve presente na educação dos filhos, incentivando e aconselhando-os. Mesmo com o coração saudoso, não recuava quando se tratava de encaminhá-los aos colégios internos, longe do conforto materno.

Ela fugia ao ditado popular de que ‘avó deseduca’. Sempre enérgica com os netos, seja na educação formal, moral ou religiosa. Todos os domingos, missa e comunhão. Semi-analfabeta, incentivava a leitura entre os pequenos. Mas também compartilhava as brincadeiras da criançada, especialmente das meninas. Fazia o alfenim, preparava sucos de graviola e laranja para serem usados no faz de conta das meninas donas de casa.

 No inverno, nos permitia o banho de chuva, debaixo das biqueiras estrategicamente instaladas na frente das casas. Entre uma corrida e outra, víamos na soleira da porta principal do casarão a figura daquela mulher baixa e profundos olhos azuis. Estava ela nos vigiando. Na volta para casa, após horas de brincadeiras, éramos recebidos com um copo de ‘suco de uva’ para esquentar o corpo. O suco era feito de vinho, água e açúcar. As crianças solviam a bebida até a última gota.

Minha primeira heroína ensinou-me o amor pelas roseiras, suas preferidas, e orquídeas, as minhas. Nas férias escolas, eu tinha uma tarefa que cumpria com muita alegria. Diariamente, a acompanhava na inspeção ao jardim cultivado no quintal. Fica embevecida com a conversa que ela travava com as rosas, perguntava com estavam, como haviam passado a noite e desejava um dia especial par cada uma. Como resposta, a rosa-amélia, a la frança, o sangue de Cristo, os lírios, as camélias, os cravos ... perfumavam o casarão. Saudades dessa mulher contraditória e apaixonante.
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