domingo, 31 de julho de 2011

Silêncio que respeita!

Saudades de um passado que ainda não passou. Permanece no coração que se enche e escorre pelos olhos. Saudade do riso fácil, do aconchego com o olhar miúdo, do aperto no braço, das passadas firmes, da voz mansa, do cheiro forte, do amor incondicional. Saudades do amante da vida.

Estaria eu recusando o presente que me machuca ou tentando absorver a sua lembrança para matar a fome da ausência? Busco nas fotografias antigas, nos vídeos, um pouco de mim e o encontro. Sete anos se passaram. Parece que foi hoje. A mesma dor, surpresa, a alma dilacerada, o coração destroçado. Manhã de sábado de 31 de julho de 2004, a casa levanta alvoroçada com o seu silêncio. Chamo e ele não responde. Partiu sem um adeus ou até logo. Teria ele se despedido na noite anterior ao me cravar um olhar sereno e amoroso?

Penso que ele preferiu assim. Ir-se como sempre viveu. Gritando em silêncio, amando sem alarde, doando-se sem esperar em troca. Era como menino, sentia como menino, vivia como menino. Devoto de Nossa Senhora de Fátima, vivenciava, o que São Paulo considerava a mais excelente das virtudes, a caridade, que se traduzia no desapego, respeito às diferenças, bondade, liberdade.

No dizer dos parentes e amigos, conciliador. Para mim, generoso com uma pitada de cumplicidade. Viveu igual ao dizer de Cora Coralina “colo que acolhe, abraço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que escorre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove”.

Incentivou o caminhar livre dos filhos, a escolha da profissão, os companheiros de jornada, a vida por eles traçada. Apoiou cada decisão, embora discordando de algumas. Sentia as suas dores, aflições, medos. Às crias, cabia a certeza do apoio, aconchego, solução.

Aos netos, sempre o sim. Nunca, o talvez ou o não. A eles, tudo era permitido. Capricho nos mimos e agrados, riso das pequenas transgressões, reforçando a crença de que avô deseduca. E não adiantavam os pais ou mães virem com proibições, cobranças, broncas. Em sua casa, os pequenos reinavam. Os três mais velhos – Pedro, Lucas e Victor – comandavam as mais terríveis brincadeiras como cercar as árvores frutíferas da avó Lúcia com pólvora e depois atear fogo. No máximo, correia. Castigo, abolido na família por decreto de seu Chico.

O avô passava horas ouvindo a doce e meiga Gabriela contar sobre a escola, bonecas. Com Hannah Kelly, compra de guloseimas. Para Mariana, a quem não se cansava de elogiar a beleza, reservava horas prazerosas com os desenhos animados. O preferido, pica-pau. Yasmynhe, orgulho da inteligência e emoção com as cartinhas por ela escrita. Aos caçulas Mateus e Tiago, jogo de futebol. A cada drible ou gol, gritaria dos pequenos que se faziam grande ao vencer o avô.

O pior mesmo era ser cobaia de Gabriela, Hannah e Mariana. As meninas donas de casa, vez ou outra, investiam na culinária. Molhos para sanduíches, que ninguém se aventura tascar. Lá estava ele como provador. Deus o acuda. Horas de terror. Depois, mal estar e dores na barriga. Mas nada de fugir. Dias depois, novamente, saboreando as invenções das netas.

Homem de muitas facetas. Marido companheiro, amigo legal, irmão conciliador, político, filho presente, tio exemplo.Se aqui estivesse, acompanhava orgulhoso os primeiros passos da bisneta Fernanda, esperando ansioso o chamado “bivô”.  De todas os papéis, o que viveu mais intensamente foi a paternidade. Homem de sabedoria, reservou para cada filho um ensinamento de acordo com o seu crescimento moral e espiritual. Deixou exemplos, vivenciados ao longo de quase 70 anos (partiu 21 dias antes de festejar as sete décadas no círculo carnal).

Ao mais velho, Carlos, ensinou a benevolência e bondade com o próximo. Prática exercida diariamente. Sem alarde, acolhe os que necessitam do aconchego, mata a sede do desconhecido, sacia a fome do irmão em desespero, envolve em amor o desesperançado.  Para Suzana, a filha do meio, talvez a mais difícil delas: o perdão. Essa mulher valente, perdoa e esquece as ofensas que a acolhem de surpresa, dilacerando a sua paz. Até parece que nada a atinge, mas as lições exemplificadas por seu Chico a fortalecem no vivenciar.

Para mim, muito provavelmente por ser rebelde e muito ainda a aprender, meu pai deixou o amor a vida. A paixão pelo viver e o forte sentimento familiar. Agarro-me, como ele, a todo e qualquer fio de esperança para manter-me viva e vivaz. Muitas vezes, o medo fortalecendo a minha caminhada, trazendo a alegria de assistir o nascer, morrer e renascer do dia, na certeza de que prosseguem vivendo aqueles a quem amamos.

Ao meu pai, trago no coração o agradecimento pelas experiências vividas e tantas ainda a serem experimentadas. Espero o reencontro, um dia, tendo na mente o que nos lembra Joanna de Angelis de que “o amor vence, quando verdadeiro, qualquer distância e é ponte entre abismos, encurtando caminhos”.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Impaciência!

Após anos de busca do conhecimento, chego à terrível conclusão: sou horrivelmente impaciente. Quero tudo para agora. O tempo é hoje, preparando o amanhã. Viver intensamente cada momento, a dor, alegria, prazer, a maternidade, o jornalismo, amigos, amores.

Esperar me destrói, talvez porque ainda não introjetei o ensinamento de Jossein Toda de que a felicidade nem sempre está longe de nós, complementado pelo filósofo e escritor Marquês de Maricá de que, em seu dizer, a impaciência, quando não rodeia os nossos males, agrava-os.  

Ariana com ascendência em touro brigo com a incapacidade de suportar a espera. A vida bem que tenta ensinar, mas rebelde, teimo em não aprender. O grave é que racionalmente concordo com o apóstolo dos Gentios, de que há tempo de ceifarmos se não desfalecermos. Mas, esperar é cansativo, despreende muitas energias.

Teria razão o filósofo prussiano Immanuel Kant de que “a paciência é a fortaleza do débil e a impaciência, a debilidade do forte”? Talvez prefira eu sentir o amor sem medidas e a impaciência não conhecendo limites de São Jerônimo, pois, assim, assumirei o meu descontentamento de ter de esperar que um dia, em um futuro longínquo, não existam mais crianças abandonadas nas ruas tendo como companheiras as drogas e a indiferença, ou homens e mulheres encurvados pelo tempo mendigando o comer do dia.

Ora, como aceitar a passividade de uma sociedade corrompida que perdeu o dom maravilhoso de se emocionar com o sorriso do inocente, o choro do abandono, a alegria do levantar? Como ser paciente com a mentira que nos fere o ouvido, o fingir dos sentimentos, a maldade na espetacularização dos meios de comunicação com o sofrimento de famílias fragilizadas pela tragédia que bateu à sua porta? Sou impaciente com seres que trocam o papel de pai ou mãe pelo de carrascos de crianças prostituídas, abandonadas, amordaçadas, espancadas... e tantas adass.

Quero a realização dos sonhos hoje. Amanhã, novas fantasias, outras conquistas, derrotas, ganhos e perdas. Quem eles venham sem demora.  Enquanto isso, um pouco de Gregório de Matos:

Cresce o desejo, falta o sofrimento,
Sofrendo morro, morro desejando,
Por uma, e outra parte estou penando
Sem poder dar alívio a meu tormento.

Se quero declarar meu pensamento,
Está-me um gesto grave acobardando,
E tenho por melhor morrer calando,
Que fiar-me de um néscio atrevimento.

Quem pretende alcançar, espera, e cala,
Porque quem temerário se abalança,
Muitas vezes o amor o desiguala.

Pois se aquele, que espera se alcança,
Quero ter por melhor morrer sem fala,
Que falando, perder toda esperança. 


quinta-feira, 28 de julho de 2011

Desatino nas serenatas

- Não adianta nem tentar me esquecer. Durante muito tempo em sua vida eu vou viver...” Roberto Carlos invadia as noites enluaradas de Saboeiro, embalando os sonhos das adolescentes enamoradas. As declarações de amor e pedidos de namoro quase sempre eram acompanhadas pelas serenatas madrugada adentro.

Ainda na praça, horas antes, os rapazes davam sinais de que aquela seria uma noite especial. Era um desatino entre as meninas. Tentativas de adivinhar as músicas as serem tocadas, certezas dos galantes presentes.

As serenatas mudavam a rotina da cidade. As tertúlias acabavam mais cedo por decreto das moçoilas espevitadas ansiosas pela madrugada. Aos rapazes cabiam conseguir os LPs, a radiola, pilhas. O mais difícil, coragem para os pedidos de namoro, enfrentar os rivais.

Não, não pensem que as declarações de amor eram para mim. Eu, já adolescente, era apenas espectadora. No máximo, coadjuvante.

Caetano Veloso, com aquela voz melosa, Odair José, Roberto e Erasmo Carlos, Os Fevers eram todos para minha irmã Suzana e a prima Magda. Nas férias, estavam elas, lindas, torturando corações e alimentando sonhos nunca realizados dos rapazes. Promessas de em julho, depois transferidas para dezembro ou janeiro, quem sabe, aceitar o pedido de namoro, quando retornariam a cidade para, novamente, dilacerarem os pobres garotos. Após muita peleja, um ou outro conseguia chegar ao coração das duas malvadas.

Mas, enquanto não se decidiam por quem ficar, lá estavam elas aguardando ansiosas as serestas. Era um desarrumar e ajeitar de malas esperando a hora da cantoria. Já nas primeiras investidas, vô Manoelito, homem experimentado na vida e nos amores, acompanhava, silencioso, a arrumação das meninas. Certa noite, as mandou dormir com a promessa de acordá-las. Promessa cumprida.

O som da radiola grita ao longe, na subida da ladeira na rua principal. Duas ou três paradas nas casas vizinhas. Horas de espera até chegar a uma das janelas no oitão da casa de meus avós. Nos primeiros acordes, lá está vô Manoelito ao pé das redes chamando as netas. No misto entre alegria e ansiedade, as duas não emitem nenhum barulho. No máximo, risinhos abafados.

Como dividia o quarto com Suzana e Magda também despertava e não me fazia de rogada. Como não tinha paquera, muito menos namorado e adorava irritar minha irmã, aproveitava para fazer barulho, anunciando que a casa acordara.

Parecia eu Mário Quintana em seu dizer: "Quiseste expor teu coração a nu. E assim, ouvir-lhe todo o amor alheio. Ah, pobre amigo, nunca saiba tu, como é ridículo o amor...alheio”.

Pobres meninas. Desesperadas, tentavam segurar aquela chatinha e sem graça garota. Vontade mesmo, tinham de matá-la. Como não podiam, ameaças de surras, reclamações no dia seguinte a minha mãe. Promessas de emprestar aquele vestido novo que a tia solteira havia feito para Suzana e que eu tanto desejara. Nada feito. Como perder a oportunidade de atrapalhar o namoro dividido por uma grossa parede de dois tijolos queimados no fim do século XIX?

Calmaria somente com as pisadas de meu pai, chegando de Aiuaba. Cumprimentava ele os rapazes, orientava o melhor lugar para colocar a vitrola na soleira da janela. Esse seu Chico era um ser muito especial. Mas ai é uma outra história, de amor, dedicação, respeito, sabedoria, generosidade...

Na manhã seguinte, o ambiente sempre agradável ficava especial na casa de meus avós maternos. Menos para mim, é claro. Enquanto as meninas ainda ouvindo o cantar dos passarinhos, estava eu recebendo reprimendas da tia Águeda. Como poderia, comportar-me tão mal com as suas queridas e preferidas sobrinhas? Socorro somente da vó Mundinha, que tentava justificar minhas pequenas maldades.

- Deixem a Suzete em paz. Ela faz essas brincadeiras porque nunca se apaixonou. Quando acontecer, Deus nos acuda”, dizia ela, dando uma piscadela e me presenteando com uma rosa la frança. Seria o prenúncio do amor de Cecília Meireles: 


"É difícil para os indecisos.
É assustador para os medrosos.
Avassalador para os apaixonados!
Mas, os vencedores no amor são os
fortes.
Os que sabem o que querem e querem o que têm!
Sonhar um sonho a dois,
e nunca desistir da busca de ser feliz,
é para poucos!!"

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Mulher coragem!

- Coração é terra que ninguém anda”.

Costumava ouvir essa expressão das amigas de minha mãe nos momentos de lamentações na cozinha de casa, das desventuras dos relacionamentos e dissabores dos casamentos. No pé do fogão de lenha pareciam heroínas sem mácula que aceitavam o jogo de ilusões e crueldades dos maridos grosseiros e desalmados. Transitavam elas da realidade de traições amorosas dos companheiros para as ilusões do carinho e respeito que nunca chegavam.

Sempre que me era permitido, acompanhava o conversê da mulherada e depois saia à caça de informações para tirar minhas próprias conclusões. Por quase um ano, a história de dor e sofrimento de Raimundinha prendeu minha atenção. Analfabeta e mãe de sete crianças aceitava resignada as privações impostas pelo marido, homem de posses e coração endurecido. Dia sim, dia sim estava ela choramingando o destino.

Humilhações diárias, surras, fome. Envelhecida aos 30 anos, conversava apenas com minha mãe e algumas poucas amigas. Na frente do marido, sussurros, olhar para o chão, subserviência. Único alento, o filho mais velho de apenas 10 anos. Júnior, idolatrado pelo pai que quase sempre atendia seus pedidos para destrancar a dispensa e prover a casa com o mínimo necessário para a sobrevivência da família. Na presença do menino, o homem segurava a fúria e insanidade, poupava a mulher dos espancamentos.
                                                                                        
Tinha eu um misto de pavor e admiração por Erlindo. Alto, louro, olhos verdes vibrantes era parente e muito amigo de meu pai. Respeitava como ninguém minha mãe. Nunca retrucou as suas reprimendas. Mulher sabida essa minha mãe, não aparecia quando ele estava bêbado. Esperava a ressaca passar para puxar-lhe as orelhas.

O homem preferia o mundo rural. Trocava a cidade pela fazenda. Talvez porque ali vivia a sensualidade e paixão com Tereza, morena cheia de dengos e remelexos. Parecia ela um dos amores de Vinicius de Moraes. “Uma mulher que é a própria luta: tão linda que só espalha sofrimento. Tão cheia de pudor que vive nua”. E quanto sofrimento causou. Mas também provocou revolução na história de minha personagem.

Tarde de um sábado quente em Saboeiro, essa morena atrevida chegou de mala e cuia a casa de Erlindo. Foi logo exigindo o seu lugar. Não mais de amante, mas de patroa. Reboliço na família. Filhos choramingando em favor da mãe, amigos buscando acordo. Propostas de uma lado, recusa do outro. Tereza não aceitava morar em outro canto. Aquele era seu por merecimento. Ser amada e desejada pelo chefe do clã dava-lhe o direito de propriedade.

Em um canto da cozinha, Raimundinha acompanhava a tudo calada. Talvez esperando que decidissem o seu destino e dos filhos. Pelo menos era o que todos acreditavam. Horas de conversas, gritaria, indignação. O marido, sentindo-se o garanhão da vez, não aceitava condições. Queria as duas em casa. Uma para cuidar dos deveres domésticos. A outra, para o prazer na cama. A parentada e amigos, indignados com a proposta.

Para surpresa de todos, a pobre mulher reprimida mostrou sua força, a força da dor, desespero e humilhação. Pela primeira vez encarou o olhar do marido e disparou determinada que aquele era seu lar e que ninguém nunca mais o desrespeitaria. Indignado, partiu o homem para surrá-la. Já esperando aquela reação, puxou ela a peixeira escondida nos quadris e enfrentou seu algoz de anos.

Altiva, comunicou que daquele dia em diante era ela a dona de sua vida e daquela casa. Pelos cabelos, arrastou a morena Teresa até a calçada, ameaçando-a. Daquele dia em diante nunca mais se ouviu falar na morena de ancas que irrompe às carícias. Mas, o certo é que Raimundinha gostou de encarar as pessoas e, no restante da minha infância, não ouvi mais lamentações. Amor, dizia ela, nunca conheceu, mas passou a ser respeitada pelo marido.

 A perdi no tempo. Não sei se ainda vive, onde e como. Mas, naquela tarde longínqua, deixou-nos a lição de que o medo nos paralisa e impede que vejamos todo o horizonte de possibilidades que existe pela frente. 

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Entre sonho e realidade



F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway em um café com amigos

A cada filme, Woody Allen supera sua genialidade, se é que isso é possível. Em “Meia-Noite em Paris” esse homenzinho sem graça, feio e desengonçado nos leva a fantástica viagem aos anos 1920, a boemia esfuziante dos ateliês e cafés parisienses e encontro com a intelectualidade da época: Ernest Hemingway, Pablo Picasso, Zelda e F.Scott Fitzgerald, Gertrud Stein, Cole Porter, Salvador Dalí e tantos outros.


Noite dessas entrei sem cerimônia no mundo da elegância pós guerra. Entre fantasia e realidade, lembrei-me de Welba, amiga de infância, e de sua vida, cujo enredo mais parece os devaneios de Gil, roteirista de Hollywood no filme, ou o drama do repórter Jake e sua paixão pela fútil Lady Brett Ashley em “O sol também se levanta”.


Tivesse Welba vivido os anos loucos na Cidade da Luz certamente seria personagem de  Hemingway, com seus conflitos, frustrações. Determinada e sem paciência, estava sempre correndo a procura de realizações. Engenheira bem-sucedida, transitava entre o real e a imaginação e se comprazia com as decepções amorosas.Entre um gole e outro de tequila, dizia sempre chegar atrasada nos relacionamentos.


- Por que os homens que me interessam estão sempre comprometidos?"

A pergunta era disparada a queima-roupa aos amigos à espera de resposta inteligente. Pensava eu no autor de “O velho e o mar”, que em seu dizer lembra que “o homem não é feito para a derrota. Um homem pode ser destruído, mas não derrotado”.


Porres, humilhações, mágoas. Anos de desencantos.Um dia, a bela mulher desencanta. Decide ser feliz. A primeira providência, zerar o passado e romper com o presente que tanta dor lhe causa. Terminou o romance de dois anos com o homem egoísta, indeciso e casado. Guardou luto por oito dias, como diz um amigo. Resolveu se amar por inteira, sem medos ou culpas.


Welba foi ao encontro da felicidade. Dedicou-se ao trabalho, viajou, saiu com amigos, vernissagens, praia, teatro, leitura, cinema, vida. Amou e foi amada diversas vezes. Chorou despedidas, riu nos encontros. Conheceu Carlos, divorciado, leal, companheiro. Com o médico sergipano, atravessou o Atlântico para desbravar os boulevares parisienses. Conta ela que está conhecendo um novo mundo: o da verdade, da entrega de duas pessoas diferentes que se respeitam.

- Sinto-me linda, desejada, amada". São os dizerem do cartão-postal enviado aos amigos que suportaram, anos a fio, suas reclamações e malquerenças. Trocou as noitadas de tequila por vinho e boa música, acompanhada por Cole Porter. Na solidão, Edith Piaf. Mas, poucos são esses momentos. Não tem tempo. Está procurando Henri Matisse, Luis Bruñel, Sartre...

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Amor proibido?

Fernanda é dessas mulheres difíceis de se compreender. Moça bonita, brejeira, de família, não se importava com o falatório alheio, mas gostava de meter sua colher na panela dos outros, principalmente se fosse briga de marido e mulher. Passei a infância observando aquela criatura, com misto de admiração e repulsa. Na adolescência, indiferença. Adulta passei a compreendê-la e a imaginar seus dramas, dificuldades e, principalmente, coragem. Coragem em assumir o amor proibido, canhestro.

Menina miúda e sem graça, ficava eu a fantasiar a sua vida. Passava horas sentada na porta de casa bisbilhotando as conversas, risos e discussões produzidos por nossa ilustre vizinha. Morávamos em um casarão que pertencia a Paróquia de Nossa Senhora da Purificação. Anos antes, dois cômodos haviam sido desligados do imóvel e transformados em uma espécie de sacristia. E Fernanda era a dona desse lugar, emitia o batistério (certidão de Batismo), marcava as missas, determinada se o padre atenderia ou não algum fiel, intermediava pedidos.


Na verdade, ela era dona do coração do religioso. O estrangeiro que chegou a Saboeiro dois anos após o meu nascimento, lá pelos idos de ...Não importa quando. Homem alto, mais de dois metros de altura, branco, olhos claros, mãos e pés assustadores. Não havia menino ou menina que não temesse aquele holandês. Quando falava, parecia um trovão replicando. Apesar do pavor que ele nos causava, gostava eu de observá-lo lendo os livros com letras trocadas, no meu entender de menina matuta. Ele acumulava cultura em inglês, holandês, francês, italiano, alemão, espanhol, além do português. Neste último idioma, tropeçava em algumas palavras, sempre com o erre arrastado. Todas as noites acompanhava o noticiário da BBC de Londres pelo rádio.

Contam que o casal se aproximou logo que o religioso chegou à cidade. Ele arranjou emprego para a moça, de unhas grandes sempre pintadas de encarnado, fumante e fala alta, sempre na cadeira de balanço, como se esperando o pedido de favores. Sejam remédios, roupas, utensílios, sapatos. As doações, vindas da Europa em containers para serem distribuídos aos humildes da região, ficavam guardados na capela da família de minha mãe desmontada pelo padre. Fernanda, dona das chaves.


A distribuição ou venda eram feitas de acordo com o bel prazer dos dois. Do mais humilde ao homem rico, a mulher de posses, todos procuravam Fernanda para conseguir aquele tecido fino para o casamento ou festa de 15 anos da filha, a toalha de banquete. Para alguns, dependendo o humor do dia, padre Ricardo dava a peça inteira. A outros, recusava quantias exorbitantes para apenas dois metros de fazenda.

“Não dou e nem vendo. Saia da minha casa, saia”, respondia aos gritos, a proposta de compra. Para não levar um não no meio da cara, o negócio era agradar a moça, que se comprazia com a humilhação dos mortais.

Décadas de relacionamento e cumplicidade de uma cidade inteira. Ninguém mais se incomodava quando o casal saia da casa paroquial direito para a missa das 19hs, ou com os banhos no fim de tarde nos caldeirões, sempre acompanhados de um magote de garotos e garotas, filhos de amigos do padre.

Ah, o amor! Diz o poeta que tudo é permitido quando se ama. Até mesmo romper as regras e ritos da igreja. E eles fizeram com a anuência dos bispos diocesanos, os moradores da terra do galo, parentes e amigos. O romance era tão natural que ninguém mais comentava. Era notícia antiga.

Quando ele adoeceu, tinha problemas pulmonares, resultado de trabalho em uma fábrica na Holanda pós Segunda Guerra Mundial, ela se muda para a casa paroquial. Cuida do amado até sua partida para a Pátria Espiritual. O corpo é enterrado no altar mor da Igreja Sagrada Família, por ele construída, uma década antes.

Passei a infância e adolescência admirando e temendo aquele homem. Temia o seu jeito direto de falar com as pessoas, às negativas, a porta sempre fechada para a maioria das pessoas. Avessa à formalidade, vez ou outra entrava na casa sem ser convidada. Nunca fui expulsa ou destratada. Pelo contrário. A única explicação que encontro é porque, metida e enxerida, lia as passagens do Evangelho nas missas de domingo. Menina com nove, dez anos, estava eu ao lado do padre assumindo o papel de adulta e letrada.

 Conversávamos por horas. Na verdade, só ele falava. Ficava eu absorvendo seus conhecimentos de literatura, culinária, jardinagem. A cada encontro, era uma viagem a sua Holanda.  Ele me apresentava os jardins floridos de Amsterdam, os campos de tulipa, os passeios de bicicleta, as casas flutuantes no rio Amstel.
                                                                                                                        
Já adulta, na Holanda, compreendi o fascínio daquele homem por sua gente. Na primeira vez que estive no país, chorei a alegria da matutinha de Saboeiro desbravando a fantasia de criança.  Dois anos depois, levei meus três filhos para comigo descobrir ruas, cidades, campos holandeses. Uma nova aventura, regada a recordações de um tempo distante. 

terça-feira, 12 de julho de 2011

Saudades da menina Kátia!


Hoje, lembrei-me de Kátia, amiga de infância, e senti saudades. Menina feia e sem graça, sonhava sonhos grandiosos. Queria estudar, ser independente, conhecer e conquistar o mundo. Não aceitava o destino traçados às mulheres da cidade: casa, marido e filhos. Naquele universo, tinha nas professoras primárias a referência profissional. Não podia ser diferente. Em Saboeiro não havia medica, dentista, psicóloga. Apenas uma advogada, que aparecia de vez em quando para visitar a parentada.

Seu desejo, cursar faculdade e sair “correndo de escola em escola” dando aulas. A condução, um fusca verde. Na racionalidade de criança, praticava o ofício com as bonecas. As colocava sentadas no chão do quarto e passava horas a fio a ensiná-las a escrever e ler corretamente. O alfabeto já estava impregnado na parede. Recebeu logo o apelido de “professorinha”.


Devorava todos os livros que lhe caiam às mãos. Não livrava nem mesmo as velhas revistas de “O Cruzeiro” ou bulas de remédio. Os parentes da cidade grande levavam, nas férias, livros de história, romances. Entre um banho e outro no rio Jaguaribe viajava nas histórias de Monteiro Lobato. Era especialmente fascinada pelas peripécias da boneca Emília. Por aquelas bandas, eram poucas as crianças que gostavam de ler. Preferiam as brincadeiras de rua, os guisados, reisados e piqueniques.

Kátia não recusava um desafio. Corria pelas ladeiras da cidade, brigava com os meninos, subia nos pés de árvores, saia pelo mato à caça de pássaros, como o Pedrinho de Monteiro Lobato. Participava das festas da Igreja. Era anjinho de Nossa Senhora da Purificação. Não recusava uma dança com o pai. E se fosse um xote, o pobre homem era obrigado a levá-la, por horas, pelo salão.

Ainda criança arribou com a família para a Capital em busca de melhores estudos, como dizia sua tia. Aqui, descobriu outro mundo, o da fantasia do cinema e teatro, da prisão de não poder sair para a casa da vizinha ou de correr pelas ruas, da saudade da vida perdida lá atrás, quando se despediu de nós, suas amigas. Trocamos sonhos e confidências anos a fio. Toda semana era uma carta com as novidades. Novos amigos, namorados, família, estudos e livros. Ela me apresentou ao Carlos Drummond de Andrade, ao cronista Rubens Braga, Érico Veríssimo, Jorge Amado. Mais tarde, Cora Coralina.

Não sei se realizou os sonhos de infância. Ainda na juventude nos perdemos. O último encontro foi logo após a sua festa de formatura. Trocou o magistério por outra profissão. Soube que casou, descasou, teve filhos. Enfrentou sozinha o câncer. Poupou a família do sofrimento da doença, dividiu algumas dores com poucos amigos. Dizem que Kátia viveu amores, desamores, paixão. Sei que sempre quis o que não se pode explicar. Escolheu viver entre a razão e a emoção.

domingo, 10 de julho de 2011

Passarinho com asas!



No entender do escritor francês Charles Péguy, os 40 anos são uma idade terrível. “É a idade em que nos tornamos naquilo que somos”. Penso eu: é o olhar para trás, a saudade do tempo de criança, do passarinho sem asas que ainda não viajou e fica a imaginá-la. 

Seria ele o adulto de Rubem Alves que viajou e fica feliz olhando as fotos da viagem? A viagem à meninice em Arneiroz, à mercearia Inhamuns, à rebeldia da adolescência no Colégio Rui Barbosa, os passeios com o pai ao rio Jaguaribe ou a mais aventureira e prazerosa delas, a paternidade.

Hoje é tempo de celebrar o pai amoroso de duas adolescentes, o filho generoso, o amigo leal, o homem viciado em trabalho. Pensaria ele em terras lusitanas estar envelhecendo aos 40. A maturidade, anunciada pelos primeiros fios de cabelos brancos encobertos pelo gel, é alentada por Fernando Pessoa. “Não importa se a estação do ano muda, se o século vira, se o milênio é outro, se a idade aumenta. Conserva a vontade de viver. Não se chega à parte alguma sem ela".

Cabe a mim lembrar que o tempo é como o rio, não para. E com ele o desafio do caminhar, sonhar, do temor, das incertezas, da intensidade dos momentos, do viver coisas inexplicáveis e do conhecer pessoas que cruzam nossos caminhos por acaso ou ironia do destino.

Esse novo quarentão é fogo, fome, alegria. Fome de palavras, fogo de vida e otimismo no ser. Não tem tempo ruim que o impeça de acreditar, de buscar os ideais, de transcender a materialidade. Ensina-nos ele a amar o que nos foi dado e a viver o tempo que nos é permitido. Parece o sabiá de Manoel de Barros, no qual a ciência não pode medir os seus encantos e nem calcular quantos cavalos de força nele existe. “Quem acumular muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam”.

Com esse menino moço a travessia é mais tranqüila. No seu jeito de prosear, contar causos, a vida vai nos provocando, afetando. E criaturinhas, muito a conhecer, vamos nós aprendendo o manual de instrução para uma vida melhor. Lembra ele, é só seguir o rito e nele entrar. Difícil? Para o aniversariante de hoje é coisa simples. Basta se deixar levar. É o pacto da felicidade de Carlos Drummond de Andrade, que em seu dizer nos lembra de não“pensar no que não tenho e que gostaria de ter, mas em como posso ser feliz com o que possuo. E o maior bem que possuo é a própria vida”.

O que presentear? Livros, roupa de grife, aquela caneta de marca para enfeitar o rico terno, a gravata desfilada nas mais chiques passarelas? Muito provavelmente ganhará alguns desses, regados com vinho do Porto. Metida como só, uso a comunicação para mandar o meu regalo. É a reflexão da serenidade e do amor ao próximo de Mahatma Gandhi.

“Se eu pudesse deixar algum presente a você, deixaria aceso o sentimento de amar a vida dos seres humanos. A consciência de aprender tudo o que foi ensinado pelo tempo a fora. Lembraria os erros que foram cometidos para que não mais se repetissem. A capacidade de escolher novos rumos. Deixaria para você, se pudesse, o respeito aquilo que é indispensável. Além do pão, o trabalho. Além do trabalho, a ação. E, quando tudo mais faltasse, um segredo: o de buscar no interior de si mesmo a resposta e a força para encontrar a saída”.

Feliz aniversário! 

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Alegria do viver!


Vestida com blazer marrom, sapato escarpin preto, carteira fina, andar sereno. É a primeira lembrança que me vem de Branca Amélia, cuja elegância clássica nos transportava do árido sertão dos Inhamuns para os mais requintados salões europeus. Se é que isso é possível. Na infância, ficava eu a admirá-la atravessar as ruas de Aiuaba, cumprimentar homens e mulheres com esmero e delicadeza. Era, para mim, criança de apenas seis anos, a imagem de uma deusa descida à terra para nos banhar com o brilho de uma estrela hollywoodiana.


Anos mais tarde, essa senhora me ensinou a alegria da vida. Viúva, retornou a Saboeiro, onde passou a residir com a irmã solteira e uma filha de criação. Aos 75 anos, sofreu um acidente vascular cerebral. Perdeu os movimentos do lado esquerdo do corpo.  Meses entrevada na cama. A parentada se revezando nos cuidados com a senhora. Comida na boca, remédios com hora marcada, banhos no quarto.


No início, as visitas das amigas de reza, sobrinhos e afilhados eram tantas que atrapalhavam os afazeres da casa. Depois, as adolescentes da cidade, ai me incluo. Não sei como e nem quando, mas, todas as noites, visitas a dona Branca Amélia. Antes das tertulhas ou encontros na praça do parque, uma passada para risos, histórias.


Com o passar dos meses, a visão foi abandonando a devota de Nossa Senhora do Patrocínio, padroeira de Aiuaba, cidade a qual adotou décadas atrás. Quem esperava uma senhora triste ou rabugenta, engana-se. Não importava se em noites enluaradas ou chuvosas, lá estávamos nós, sentadas ao redor da cadeira de rodas, relatando o dia de banhos nos caldeirões, as brigas dos enamorados, as paqueras, estudos...


Aproveitava as férias escolares em Saboeiro para receber aulas de alegria, bom humor e aceitação. Em mais de dez anos de convivência, dona Branca Amélia nunca, mas nunca mesmo, maldisse da sorte, aos reversos da vida. Horas de boa conversa, conselhos, gargalhadas. Saíamos renovadas da casa rosa com portas amarelas. A mulher recebia a todos com muito entusiasmo, que aumentava com o passar das horas. Viajava nas histórias das meninas-mulheres, nas suas fantasias, sonhos.

Ela recebia a todos com muita alegria. Nada de conversas tristes. A velha senhora mantinha a altivez e serenidade. Não interessa se os de casa ou visitantes de longe. Ela sempre recebia com largo sorriso e palavras de carinho.

Nos dias de solidão ou quando as provas são mais difíceis e exigem coragem e determinação, lembro-me daquela bela senhora, do seu entusiamos e resignação. Nestes momentos, percebo o quanto sou privilegiada. Tive uma excelente professora de otimismo e  coragem. 

sábado, 2 de julho de 2011

Direito ao medo?

Além de seu tempo. Vaidosa, destemida, bela. Assim era Iracema, não a índia tabajara que viveu uma trágica história de amor com o português Martin Soares Moreno. Igual a virgem dos lábios de mel de José de Alencar, a minha personagem é filha de chefe de clã, influente líder político da região dos Inhamuns.

Medo?  Estado emocional inexistente na longa caminhada da mulher morena, pequena, olhos pretos e expressivos. Derrota, diria ela, só para o Alzheimer, que levou a memória, tristezas e alegrias. Trouxe a infância dos 13 filhos no aconchego da boneca e cantigas de ninar.

A andar altivo, olhar instigador, gestos fortes, sorriso só para os seus querer. Desaforo, não levava pra casa. Satisfação tomava onde se fizesse necessário: na igreja, delegacia ou fórum. Não tinha tempo ruim e nem bom para Iracema resolver suas querências. Ao marido, cabia apenas o conhecimento dos fatos. Feito Maria Bonita sem o seu Lampião, já que o esposo, homem pacato e ordeiro, não se envolvia nas suas brigas. No máximo, conselhos, dificilmente aceitos pela mulher.

Unha sempre pintada com esmalte encarnado, rosto maquilado, bijuterias enfeitando o dorso e brincos grandes brigando com a orelha miúda. Sempre arrumada, seja nas reuniões sociais, missas e entreveros. Nada em desalinho. Assim estava quando trocou tiros com a polícia, lá pelos idos 1950, quando o chefe do destacamento tentou prender dois de seus filhos. Contam que a mando de adversário político da família.

O que sei é que os jovens estavam com em um bar na cidade com os amigos, quando receberam ordem de prisão. Resistiram. Ameaças de um lado, desrespeito do outro. Batem boca, empurrões. Em meio à discussão, a mãe avisada chega com armas em punho. Protege os filhos detrás do balcão e vai logo avisando: ‘filho meu não vai pra cadeia’. Troca tiros com os policiais, que amedrontados fogem.

Muitas histórias fazem parte do imaginário da cidade. Lenda, realidade ou meio verdade, não importa. A cada narrativa, o fato ganha novos contornos, como o dia em que cortou, com uma faca de cozinha, o sexto dedo da mão de um recém nascido, atendendo clamor dos pais da criança e da parteira; surrou o filho mais velho, já com 35 anos e pai de família, por fazer oposição política a um irmão; tomar presos a caminho da cadeia por considerar uma injustiça ou perseguição. E tantos outros causos.

Seria Iracema o Riobaldo de Grande Sertão Veredas ao perceber que o medo é contagioso e reconhecer o direito de não lhe fazerem medo?  Ou teria incorporado a invenção da coragem? Pensaria aquela mulher que “viver é um descuido prosseguido”?  Concordaria ela com Guimarães Rosa no seu dizer “Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem. E, enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam - o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu - o que quero e sobrequero -: é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim". 
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