quarta-feira, 20 de julho de 2011

Mulher coragem!

- Coração é terra que ninguém anda”.

Costumava ouvir essa expressão das amigas de minha mãe nos momentos de lamentações na cozinha de casa, das desventuras dos relacionamentos e dissabores dos casamentos. No pé do fogão de lenha pareciam heroínas sem mácula que aceitavam o jogo de ilusões e crueldades dos maridos grosseiros e desalmados. Transitavam elas da realidade de traições amorosas dos companheiros para as ilusões do carinho e respeito que nunca chegavam.

Sempre que me era permitido, acompanhava o conversê da mulherada e depois saia à caça de informações para tirar minhas próprias conclusões. Por quase um ano, a história de dor e sofrimento de Raimundinha prendeu minha atenção. Analfabeta e mãe de sete crianças aceitava resignada as privações impostas pelo marido, homem de posses e coração endurecido. Dia sim, dia sim estava ela choramingando o destino.

Humilhações diárias, surras, fome. Envelhecida aos 30 anos, conversava apenas com minha mãe e algumas poucas amigas. Na frente do marido, sussurros, olhar para o chão, subserviência. Único alento, o filho mais velho de apenas 10 anos. Júnior, idolatrado pelo pai que quase sempre atendia seus pedidos para destrancar a dispensa e prover a casa com o mínimo necessário para a sobrevivência da família. Na presença do menino, o homem segurava a fúria e insanidade, poupava a mulher dos espancamentos.
                                                                                        
Tinha eu um misto de pavor e admiração por Erlindo. Alto, louro, olhos verdes vibrantes era parente e muito amigo de meu pai. Respeitava como ninguém minha mãe. Nunca retrucou as suas reprimendas. Mulher sabida essa minha mãe, não aparecia quando ele estava bêbado. Esperava a ressaca passar para puxar-lhe as orelhas.

O homem preferia o mundo rural. Trocava a cidade pela fazenda. Talvez porque ali vivia a sensualidade e paixão com Tereza, morena cheia de dengos e remelexos. Parecia ela um dos amores de Vinicius de Moraes. “Uma mulher que é a própria luta: tão linda que só espalha sofrimento. Tão cheia de pudor que vive nua”. E quanto sofrimento causou. Mas também provocou revolução na história de minha personagem.

Tarde de um sábado quente em Saboeiro, essa morena atrevida chegou de mala e cuia a casa de Erlindo. Foi logo exigindo o seu lugar. Não mais de amante, mas de patroa. Reboliço na família. Filhos choramingando em favor da mãe, amigos buscando acordo. Propostas de uma lado, recusa do outro. Tereza não aceitava morar em outro canto. Aquele era seu por merecimento. Ser amada e desejada pelo chefe do clã dava-lhe o direito de propriedade.

Em um canto da cozinha, Raimundinha acompanhava a tudo calada. Talvez esperando que decidissem o seu destino e dos filhos. Pelo menos era o que todos acreditavam. Horas de conversas, gritaria, indignação. O marido, sentindo-se o garanhão da vez, não aceitava condições. Queria as duas em casa. Uma para cuidar dos deveres domésticos. A outra, para o prazer na cama. A parentada e amigos, indignados com a proposta.

Para surpresa de todos, a pobre mulher reprimida mostrou sua força, a força da dor, desespero e humilhação. Pela primeira vez encarou o olhar do marido e disparou determinada que aquele era seu lar e que ninguém nunca mais o desrespeitaria. Indignado, partiu o homem para surrá-la. Já esperando aquela reação, puxou ela a peixeira escondida nos quadris e enfrentou seu algoz de anos.

Altiva, comunicou que daquele dia em diante era ela a dona de sua vida e daquela casa. Pelos cabelos, arrastou a morena Teresa até a calçada, ameaçando-a. Daquele dia em diante nunca mais se ouviu falar na morena de ancas que irrompe às carícias. Mas, o certo é que Raimundinha gostou de encarar as pessoas e, no restante da minha infância, não ouvi mais lamentações. Amor, dizia ela, nunca conheceu, mas passou a ser respeitada pelo marido.

 A perdi no tempo. Não sei se ainda vive, onde e como. Mas, naquela tarde longínqua, deixou-nos a lição de que o medo nos paralisa e impede que vejamos todo o horizonte de possibilidades que existe pela frente. 

2 comentários:

  1. Nossaaaa!!! E o pior é que, em pleno século XXI, ainda existam muitas Raimundinhas por aí.

    ResponderExcluir
  2. Tão sabida, dona Suzete. A cada dia a Senhora está mais sabida. Bjs.

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...