quinta-feira, 14 de julho de 2011

Amor proibido?

Fernanda é dessas mulheres difíceis de se compreender. Moça bonita, brejeira, de família, não se importava com o falatório alheio, mas gostava de meter sua colher na panela dos outros, principalmente se fosse briga de marido e mulher. Passei a infância observando aquela criatura, com misto de admiração e repulsa. Na adolescência, indiferença. Adulta passei a compreendê-la e a imaginar seus dramas, dificuldades e, principalmente, coragem. Coragem em assumir o amor proibido, canhestro.

Menina miúda e sem graça, ficava eu a fantasiar a sua vida. Passava horas sentada na porta de casa bisbilhotando as conversas, risos e discussões produzidos por nossa ilustre vizinha. Morávamos em um casarão que pertencia a Paróquia de Nossa Senhora da Purificação. Anos antes, dois cômodos haviam sido desligados do imóvel e transformados em uma espécie de sacristia. E Fernanda era a dona desse lugar, emitia o batistério (certidão de Batismo), marcava as missas, determinada se o padre atenderia ou não algum fiel, intermediava pedidos.


Na verdade, ela era dona do coração do religioso. O estrangeiro que chegou a Saboeiro dois anos após o meu nascimento, lá pelos idos de ...Não importa quando. Homem alto, mais de dois metros de altura, branco, olhos claros, mãos e pés assustadores. Não havia menino ou menina que não temesse aquele holandês. Quando falava, parecia um trovão replicando. Apesar do pavor que ele nos causava, gostava eu de observá-lo lendo os livros com letras trocadas, no meu entender de menina matuta. Ele acumulava cultura em inglês, holandês, francês, italiano, alemão, espanhol, além do português. Neste último idioma, tropeçava em algumas palavras, sempre com o erre arrastado. Todas as noites acompanhava o noticiário da BBC de Londres pelo rádio.

Contam que o casal se aproximou logo que o religioso chegou à cidade. Ele arranjou emprego para a moça, de unhas grandes sempre pintadas de encarnado, fumante e fala alta, sempre na cadeira de balanço, como se esperando o pedido de favores. Sejam remédios, roupas, utensílios, sapatos. As doações, vindas da Europa em containers para serem distribuídos aos humildes da região, ficavam guardados na capela da família de minha mãe desmontada pelo padre. Fernanda, dona das chaves.


A distribuição ou venda eram feitas de acordo com o bel prazer dos dois. Do mais humilde ao homem rico, a mulher de posses, todos procuravam Fernanda para conseguir aquele tecido fino para o casamento ou festa de 15 anos da filha, a toalha de banquete. Para alguns, dependendo o humor do dia, padre Ricardo dava a peça inteira. A outros, recusava quantias exorbitantes para apenas dois metros de fazenda.

“Não dou e nem vendo. Saia da minha casa, saia”, respondia aos gritos, a proposta de compra. Para não levar um não no meio da cara, o negócio era agradar a moça, que se comprazia com a humilhação dos mortais.

Décadas de relacionamento e cumplicidade de uma cidade inteira. Ninguém mais se incomodava quando o casal saia da casa paroquial direito para a missa das 19hs, ou com os banhos no fim de tarde nos caldeirões, sempre acompanhados de um magote de garotos e garotas, filhos de amigos do padre.

Ah, o amor! Diz o poeta que tudo é permitido quando se ama. Até mesmo romper as regras e ritos da igreja. E eles fizeram com a anuência dos bispos diocesanos, os moradores da terra do galo, parentes e amigos. O romance era tão natural que ninguém mais comentava. Era notícia antiga.

Quando ele adoeceu, tinha problemas pulmonares, resultado de trabalho em uma fábrica na Holanda pós Segunda Guerra Mundial, ela se muda para a casa paroquial. Cuida do amado até sua partida para a Pátria Espiritual. O corpo é enterrado no altar mor da Igreja Sagrada Família, por ele construída, uma década antes.

Passei a infância e adolescência admirando e temendo aquele homem. Temia o seu jeito direto de falar com as pessoas, às negativas, a porta sempre fechada para a maioria das pessoas. Avessa à formalidade, vez ou outra entrava na casa sem ser convidada. Nunca fui expulsa ou destratada. Pelo contrário. A única explicação que encontro é porque, metida e enxerida, lia as passagens do Evangelho nas missas de domingo. Menina com nove, dez anos, estava eu ao lado do padre assumindo o papel de adulta e letrada.

 Conversávamos por horas. Na verdade, só ele falava. Ficava eu absorvendo seus conhecimentos de literatura, culinária, jardinagem. A cada encontro, era uma viagem a sua Holanda.  Ele me apresentava os jardins floridos de Amsterdam, os campos de tulipa, os passeios de bicicleta, as casas flutuantes no rio Amstel.
                                                                                                                        
Já adulta, na Holanda, compreendi o fascínio daquele homem por sua gente. Na primeira vez que estive no país, chorei a alegria da matutinha de Saboeiro desbravando a fantasia de criança.  Dois anos depois, levei meus três filhos para comigo descobrir ruas, cidades, campos holandeses. Uma nova aventura, regada a recordações de um tempo distante. 

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