sábado, 2 de julho de 2011

Direito ao medo?

Além de seu tempo. Vaidosa, destemida, bela. Assim era Iracema, não a índia tabajara que viveu uma trágica história de amor com o português Martin Soares Moreno. Igual a virgem dos lábios de mel de José de Alencar, a minha personagem é filha de chefe de clã, influente líder político da região dos Inhamuns.

Medo?  Estado emocional inexistente na longa caminhada da mulher morena, pequena, olhos pretos e expressivos. Derrota, diria ela, só para o Alzheimer, que levou a memória, tristezas e alegrias. Trouxe a infância dos 13 filhos no aconchego da boneca e cantigas de ninar.

A andar altivo, olhar instigador, gestos fortes, sorriso só para os seus querer. Desaforo, não levava pra casa. Satisfação tomava onde se fizesse necessário: na igreja, delegacia ou fórum. Não tinha tempo ruim e nem bom para Iracema resolver suas querências. Ao marido, cabia apenas o conhecimento dos fatos. Feito Maria Bonita sem o seu Lampião, já que o esposo, homem pacato e ordeiro, não se envolvia nas suas brigas. No máximo, conselhos, dificilmente aceitos pela mulher.

Unha sempre pintada com esmalte encarnado, rosto maquilado, bijuterias enfeitando o dorso e brincos grandes brigando com a orelha miúda. Sempre arrumada, seja nas reuniões sociais, missas e entreveros. Nada em desalinho. Assim estava quando trocou tiros com a polícia, lá pelos idos 1950, quando o chefe do destacamento tentou prender dois de seus filhos. Contam que a mando de adversário político da família.

O que sei é que os jovens estavam com em um bar na cidade com os amigos, quando receberam ordem de prisão. Resistiram. Ameaças de um lado, desrespeito do outro. Batem boca, empurrões. Em meio à discussão, a mãe avisada chega com armas em punho. Protege os filhos detrás do balcão e vai logo avisando: ‘filho meu não vai pra cadeia’. Troca tiros com os policiais, que amedrontados fogem.

Muitas histórias fazem parte do imaginário da cidade. Lenda, realidade ou meio verdade, não importa. A cada narrativa, o fato ganha novos contornos, como o dia em que cortou, com uma faca de cozinha, o sexto dedo da mão de um recém nascido, atendendo clamor dos pais da criança e da parteira; surrou o filho mais velho, já com 35 anos e pai de família, por fazer oposição política a um irmão; tomar presos a caminho da cadeia por considerar uma injustiça ou perseguição. E tantos outros causos.

Seria Iracema o Riobaldo de Grande Sertão Veredas ao perceber que o medo é contagioso e reconhecer o direito de não lhe fazerem medo?  Ou teria incorporado a invenção da coragem? Pensaria aquela mulher que “viver é um descuido prosseguido”?  Concordaria ela com Guimarães Rosa no seu dizer “Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem. E, enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam - o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu - o que quero e sobrequero -: é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim". 

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