sábado, 3 de dezembro de 2011

Escuridão vence o lúdico

- O palhaço o que é?


- É ladrão de mulher


Sol a pique e lá vamos nós, ladeira acima, ladeira abaixo, acompanhando a trupe do circo que acabara de chegar à cidade. Palhaço, bailarinas, acrobatas, trapezistas, mágicos e a perna de pau em procissão chamam para o espetáculo logo mais a noite.


A lona é montada na praça principal, no fim da rua Visconde do Icó. De lá se avista o cemitério Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Na fachada do mercado público, o cartaz pregado com grude (espécie de cola feita de goma e água fervendo) anuncia para as 7 da noite o início da apresentação circense.  Meia hora antes, a criançada se empoleira ansiosa pelos artistas. As adolescentes, vestidas com a roupa de domingo, sentam nas primeiras filas. Talvez sonhando com o príncipe encantado no picadeiro de terra batida. Aos adultos, cabem as desconfortáveis cadeiras de madeira pesada.


Passam das 7 horas. A meninada impaciente grita, xinga, troca beliscões e empurrões. Para acalmar os nervos, picolé de morango e algodão doce. Menina miúda me acomodo na arquibancada mais alta, ao lado de um grupo de amigas. O risco de queda é iminente. O segredo é sentar na pontinha da tábua.


Tambores anunciam o início da apresentação. Fico eu com os olhos assombrados como o salto sobre o vazio do trapezista. Seguro o fôlego quando o mágico se prepara para serrar a moça ao meio. Concluo que no circo não se pensa. Assombra-se. É a realidade de Fernando Pessoa no seu dizer que “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.


Na minha infância em Saboeiro, igual a milhares de cidades pequenas Brasil afora, o circo é semelhante à visão de vida do poeta português, “uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos”.  No lugar pobre, de rara atividade cultural, o povo se embeleza, fica bonito para, com os artistas, entrar no mundo da fantasia. O picadeiro não é realidade. É uma esperança.


Noites quentes do sertão, embalo-me nos sonhos da bailarina em atravessar majestosa o arame, encanto-me com a simplicidade dos palhaços e a liberdade do trapezista. Mas são os homens com pernas de pau que me instigam. Como correr, pular, dançar em cima daquele negócio? Quando entram no picadeiro, viajo na imaginação e tento me equilibrar naquelas pernas. Ficar acima de todos, olhar para baixo com a soberba da altura.


A gritaria do público me traz a realidade. É dado o primeiro sinal de que a cidade entrará nas trevas em meia hora. Saboeiro é iluminada por energia a gás. O motor é desligado pontualmente às 21h30min. Dois avisos são dados todas as noites, sempre no mesmo horário – 21h, 21h15min -, para dar tempo dos atrasados chegarem a suas casas. No terceiro, as luzes são apagadas até as 17h45min do dia seguinte.


Alvoroço no circo. Adultos, crianças e jovens se acotovelam para sair. Muitos passam por baixo da lona, outros pulam da arquibancada. Correria até a segurança do lar. Os artistas, surpresos, são abandonados no picadeiro. O reencontro amoroso só na noite seguinte. Pontualmente às 19 horas, sem atraso. Sob pena de o lúdico ser vencido pela escuridão.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...