segunda-feira, 25 de março de 2013


Vida que se renova

Acordei com o sentimento de agradecimento. Na celebração de mais um ano de vida, a gratidão aos anos que o tempo devorou e deixou gravado na alma as lições vivenciadas no amor, alegrias, dores, saudades... No aprender e ensinar novas lições, fui traçando o meu caminhar, afastando e trazendo para perto pessoas queridas. Muitas outras cruzaram minha vida com o único propósito de me educar para o amor universal, e se foram como a mesma voracidade que chegaram.

O dia do aniversário nos leva a refletir quantos corações tocamos e a quantos deixamos de acalentar com o sorriso, o abraço, o olhar... Mas, hoje é dia de agradecimentos. À Deus, pai amoroso e compassivo, aos meus pais Chico e Lúcia, que se doaram à filha miúda e rebelde, aos meus irmãos pela paciência com os arrufos da espevitada caçula sempre cheia de razão, aos meus avós, tios, sobrinhos e primos, presentes nessa jornada de lutas, provas e realizações. 

Dia de agradecer aos meus filhos pelo companheirismo, respeito, dedicação e lições diárias de amor e desprendimento. Traduzem eles o dizer de Cora Coralina "colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove".

Hoje, senti especial saudade de amigos. Alguns revivi nas conversas por telefone, outros nas congratulações virtuais e tantos nos abraços e beijos carinhosos. Muitos deles presos nas recordações da infância em Saboeiro, da adolescência livre. Pego emprestado Rubem Alves para aceitar que a distância física não nos aparta do bem-querer. "Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno".

Como esquecer os anjos que entram em nossa vida e teimam em ficar? Eles surgem de forma inesperada e sem convites. Quando nos damos conta, já fazem parte do nosso ser, acalentam nossas perdas, riem o nosso riso, choram a nossa dor. 

Há 12 anos, fui presenteada com um anjo. O primeiro encontro, redação de TV. Tarde de sábado, estressante, cansativa. Entra ela, porta a dentro, gritando felicidade, como a nos chamar à vida. Feito os anjinhos barrocos, grandes cachos louros, olhar penetrante, sorriso aberto.

Hoje, senti saudades. Com uma intensidade incomum, dei-me conta da raridade de nossa amizade. Lembrei-me de meu anjo Carolina, cujo sobrenome cobre os Campos da esperança e da certeza do porvir, das palavras que enchem o vazio e mantêm a conversa animada. Não é preciso falar. Basta a alegria de estarem juntas, uma ao lado da outra, no pensamento, nas vibrações. 

Deixo a cada um que cruzou meu caminho e os que ainda virão, aos que acalentam o meu ser, o meu agradecimento por fazerem parte de minha história. Meu presente de aniversário:  

"Senhor ensina-nos a orar, sem esquecer o trabalho. A dar, sem olhar a quem. A servir, sem perguntar até quando... A sofrer, sem magoar, seja quem for. A progredir, sem perder a simplicidade. A semear o bem, sem pensar nos resultados... A desculpar, sem condições. A marchar para frente, sem contar os obstáculos.  A ver sem malícia... A escutar, sem corromper os assuntos. A falar, sem ferir. A compreender o próximo, sem exigir entendimento... A respeitar os semelhantes, sem reclamar consideração. A dar o melhor de nós, além da execução do próprio dever, sem cobrar taxas de reconhecimento... Senhor, fortalece em nós, a paciência para com as dificuldades dos outros, assim como precisamos da paciência dos outros, para com as nossas próprias dificuldades... Ajuda-nos para que a ninguém façamos aquilo que não desejamos para nós... Auxilia-nos, sobretudo, a reconhecer que a nossa felicidade mais alta será, invariavelmente, aquela de cumprir seus desígnios onde e como queiras, hoje, agora e sempre". (Chico Xavier)

terça-feira, 19 de março de 2013


Esperança e fé


O dia amanhece diferente em casa. Minha mãe Lúcia e tia Zuleide com terço nas mãos em súplica à São José para que a chuva caia sem parar no Ceará. Rogam ao santo padroeiro para que o sol se "arretire" e dê passagem a água que banha os sonhos e ilusões de sertanejos sofridos e penitentes. Igual a Riobaldo, de Grande Sertão: Vereadas, elas trazem na alma o sertão, suas dores, promessas e amores. 

Experientes e experimentadas pela vida de mais de sete décadas, mães, avós e bisavó nasceram sob a sina da seca e as atravessa com dores e rezas. No olhar impetrante, tomam a retina as cenas de pessoas castigadas, enrugadas e amarguradas pelas secas e que, de escassez em escassez, vê a própria vida secar por falta de oportunidades de trabalho e do comer.

Na seca de 58, ainda jovens, faziam promessas e novenas à Nossa Senhora da Purificação para que intercedesse por aquela terra árida e esquecida. Atravessaram as de 83, 93, 98 e a do ano passado sofrendo com o marmeleiro que não conseguiu voltar à vida. Choraram o mandacaru mutilado pelo golpe da foice para alimentar o gado que vai deixando sua carcaça no caminho de fome e dor. Pensam elas, lá com seus botões e as contas dos rosários, se esse será mais um ano de aroeira com galhos secos, esticados para o céu como a clamar por aqueles que ainda resistem e esperam a chegada da chuva. 

A seca traz a esse povo humilde e humilhado a fome de dignidade. Fenômeno natural no Nordeste brasileiro, transforma o problema social em político. Promessas, nunca cumpridas, são feitas por governos indiferentes e políticos que se aproveitam para ganhar espaços na mídia e votos nas eleições. Transformam homens fortes e trabalhadores em peças publicitárias. Por essas bandas nunca chega a solução para a secura que abate o sertão que grita feito o canto do Assum Preto. 

Transforma em drama a vida de sua gente. Milhares de cearenses enfrentam a falta de alimentos, água e respeito. Sem espaço e pela sobrevivência, o valente sertanejo vira pedinte nas ruas das grandes cidades. Envergonhado, ocupa os cruzamentos das avenidas por uma esmola rebolada no chapéu de palha por indiferentes motoristas. Acostumado a lida no campo, as intempéries da vida, grita soluções para ouvidos moucos e almas insensíveis. 

Luiz Gonzaga as traduziu nos versos de Vozes da Seca: "...Mas doutô uma esmola a um homem qui é são/ Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão/ É por isso que pidimo proteção a vosmicê/ Home pur nóis escuído para as rédias do pudê...  Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage/ Livre assim nóis da ismola,/ que no fim dessa estiage lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage/ Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão/ Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!/ Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chão/ Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos”.

Mas, o padroeiro do Ceará parece compadecido desse povo. São José traz alento para as duas matronas e seus conterrâneos, que genuflexos rogam sua piedade para que molhe a caatinga. Para eles, não importa se o 19 de março coincide com a passagem do equinócio (a duração do dia é idêntica à da noite e os hemisférios Norte e Sul recebem a mesma quantidade de luz). O que realmente interessa é que o santo atendeu às rogativas. Na madrugada de hoje, Saboeiro teve de volta sua face viçosa e terna. Não se sabe se os pingos de água que caem do céu garantirão o alimento necessário para aqueles que ainda suspiram. Mas trouxe esperança.

Mulheres de minha vida


É uma cidade pequena, encravada na caatinga, sem recursos, sem ânimo. Naquele lugar, com uma rica história que sobrevive nas lembranças de poucos moradores, a vida se repete igualmente todas as horas. As pessoas vivem os dias sem nenhuma novidade. O tempo não passa. Homens se arrastam por suas ladeiras, perdidos no passado de lutas, intrigas, amores, saudades. Algumas poucas fortunas, feitas graças ao ouro branco e ao comércio do gado, esvaíram-se com o bicudo e a seca.

 No contraste dessa realidade ou por causa delas, mulheres determinadas, mães, esposas, guerreiras  escalam a montanha da vida, removendo pedras e plantando flores nos corações e mentes de homens endurecidos, amorosos, companheiros, outros infelizes e muito ainda a conhecer do amor, fidelidade, respeito. A minha infância foi rica e feliz ao redor desses seres especiais. Cada uma delas trazia no rosto e no profundo olhar as marcas de uma vida de dificuldades, improvisações. Mas, sábias, não perderam a doçura, o encanto...

Como não lembrar de vó Mundinha, mulher forte e religiosa. Nascida Raimunda Fernandes Vieira, dedicou toda a sua vida com honestidade, simplicidade e amor à família. Sempre esteve presente na educação dos filhos, incentivando e aconselhando-os. Mesmo com o coração saudoso, não recuava quando se tratava de encaminhá-los aos colégios internos, longe do conforto materno.

Tivesse convivido com ela, a escritora Rachel de Queiroz a transformaria numa de suas mulheres singulares. Minha primeira heroína ensinou-me o amor pelas roseiras, suas preferidas, e orquídeas, as minhas. Diariamente, a acompanhava na inspeção ao jardim cultivado no quintal. Fica embevecida com a conversa que ela travava com as rosas, perguntava com estavam, como haviam passado a noite e desejava um dia especial par cada uma. Como resposta, a rosa-amélia, a la frança, o sangue de Cristo, os lírios, as camélias, os cravos ... perfumavam o casarão. Saudades dessa mulher contraditória e apaixonante.

O que vivi, senti e vi se confundem com a imaginação nas minhas impressões gravadas na memória, que me remetem a professora do primeiro ano primário. Esguia, durona, valente, dona Mariazinha ensinou-me o valor do conhecimento. Após fazer birra por causa da farda e me recusar a assistir aula,  apresentou-se à realidade da maioria das famílias da cidade. Levou-se a uma casa humilde onde  três crianças –  entre sete e 11 anos - estudavam sentadas no chão de barro, com cadernos e livros espalhados pelo lugar. Os garotos dividam um único lápis. Espantada, olhei para aquela temida mulher que me respondeu  com uma frase seca que ainda hoje assombra os meus pensamentos: “Enquanto meninos da sua idade lutam para aprender, você joga fora as oportunidades”. Envergonhada sai daquela casa humilde e nunca mais perdi um só dia de aula. E, o mais importante, a valorizar cada oportunidade de conhecimento.

São tantas as guerreiras de minha cidade. Branca Amélia, com seu sorriso cativante; minha avó Iracema, que viveu a valentia de transgredir as normas da época; dona Cristina e sua sopas da tarde para a neta-filha Maria Dolores e que eu sempre filava. Entre uma baforda e outro em seu cigarro de palha, nos presenteava com relatos de outros tempos; dona Socorro apresentou à minha geração a diferença entre o u do w e os números da matemática. Mulheres que transformaram Saboeiro com seus ideais de sociedade, tão bem representada por irmã Lúcia, que nos despertou para os problemas sociais. O corpo frágil escondia a força da fiel seguidora do Evangelho e da Teologia da Libertação. 

Várias mestres influenciaram minha caminhada. Tia Zuleide, diretora rigorosa do único colégio, grande incentivadora para os estudos e exemplo. Tia Águeda, continua influindo e acompanhando nossos passos, sempre com palavras de apoio e atitudes reconfortantes, mas 

Deixei por último para falar de uma pessoa fundamental em minha vida. Nasceu no Dia Internacional da Mulher, diria eu, para ser parabenizada duas vezes. Ela, certamente responderia, que veio nessa data para dividir as comemorações com todas as mães, irmãs, tias, primas, avós...

Meiga, chorona e amorosa, minha mãe Lúcia, tem dedicado toda sua existência no cuidar dos filhos e netos. Muito devo a essa senhora de 76 anos, que contrariou todas as previsões médicas e lutou ferozmente para que seu rebento caçula sobrevivesse as incertezas de uma doença sem diagnóstico. Brigou bravamente nos meus primeiros seis meses de vida para que a desnutrição e as dores não tomassem a minha alma e me levassem "para o céu".

Ao longo dos anos, dona Lúcia continua cuidando de minha e dos meus. Chora as minhas dores, festeja as minhas alegrias e vitórias. Hoje, continua zelando pela menina “raquítica”que teimava em viver e que renasceu muitas vezes graças a essa mulher de menos de um metro e cinqüenta de altura, olhar doce, palavra mansa e uma fortaleza que faz os gigantes tremerem.

Parabéns minha mãe Lúcia,  e a tantas avós Mundinha, tias Águeda, Zuleide, professoras Socorros e Mariainhas  pela coragem de remover pedras e plantar flores

domingo, 3 de março de 2013


Reencontros

É preciso preparar a alma para o reencontro. Trazer de volta à memória do tempo as imagens perdidas na "estrada da vida". Adultos, relembram prazerosos as ladeiras de pedra portuguesa, os casarios do século XIX destruídos pela incompreensão de seus donos, as tertúlias nos salões de casas de família, os namoros escondidos e concedidos, o medo, as alegrias de uma infância livre, as primeiras letras no grupo escolar...

Homens e mulheres, realizados e muito a construir, preparam-se para reviver sentimentos que os aprisionam nas turvas águas do rio Jaguaribe, no galo na torre da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, nas festas no mercado público, nas novenas e passeios aos caldeirões. Presos ainda ao som dos tambores anunciando a festa de São Gonçalo no terreiro de terra batida em frente à casa do Antônio Luiz. A dança cortando a noite os atinge com a mesma emoção de outrora.

Parecem crianças que trazem dentro de si os sonhos grandiosos que cabiam na palma da mão e os faziam voar além da pequena Saboeiro. Seriam reféns do passado que insiste aprisioná-los? Ou estariam se alimentando do passado na desvairada ilusão de aprisioná-lo para recriá-lo, comendo    "aquilo que já deixou de existir", no compreender de Rubem Alves.

Não importam o que sejam. Querem o reencontro, as recordações e trazer, por alguns momentos, o Saboeiro de suas lembranças . Numa noite de sábado, entre vinhos, queijos, algazarra, garalhadas, flashs das máquinas fotográficas e celulares de última geração. Clélia, Graça, Suzana, Liduína, Eugênio, Ismêna, Maia, Vicente, Suzete,  Vanderbilt, Querubina, Jânio... ,em frações de segundos, materializam pessoas queridas que já retornaram ao plano espiritual e a vida que escorreu na caminhada.

Em meio a histeria daqueles adultos-crianças com suas histórias, lembradas e recontadas no barulho da emoção, vem-me a mente o dizer do escritor e jornalista Gabriel Garcia Marques: "A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la". Acrescento, eu, cada um conta de acordo com o seu olhar e suas experiências. 
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