segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Belas amigas em viagem

Há mais de quatro décadas viajamos juntas. Conhecemos cidades, percorremos retas, nos apoiamos nas curvas, deslizamos nas ladeiras, vislumbramos parques, desbravamos sertões, criamos vidas, produzimos milhões de sorrisos.

Rimos e sofremos juntas. Dividimos histórias, construímos laços, escolhemos caminhos diferentes, realizamos projetos distintos, tocamos corações, andamos por outras paragens, fizemos amigos, mas sempre presas a mesma viagem. Iniciada lá atrás, na terra amada, forte, revigorante. Cada uma com suas experiências e vivências. Juntas, um ser indizível.

Cada qual a seu jeito, imenso trabalho deram na infância. Difícil era torcê-las, retorcê-las, medi-las e desmedi-las. Desafiavam as caudalosas águas do rio Jaguaribe, brincavam de gente grandes nos guizados, feiras e quermesses. Foi-se a turbulência ativa das crianças e com ela a inocência do querer. Chegaram a brejeirice, tertúlias, namoros, serenatas (para duas delas), despedidas

E o tempo se foi. Deixou saudades, acumulou medos, serenou corações, fertilizou alegrias. Na maturidade, reencontro com a meninas desafiadoras, tímidas, serenas...Belas. Tudo é motivo para gargalhadas, presentes, brincadeiras. Arengar também é permitido. Peixe, camarão, doces, sorvetes, bebida. Fartura na mesa e nos corações.

Fim de tarde, abraços, beijos, novas despedidas. Reencontro marcado. E lá se vão as cinco senhoras-meninas para suas vidas à espera da viagem no próximo mês.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Memória afetiva

A emoção represada trouxe-me de volta ao blog.  A vontade de escrever ecoava no pensamento e gritava no coração. O desejo ficou mais forte ao visitar, online, o museu de meu tio Robério. Percebo que tenho pressa em recolher meu passado, minhas sobras, as sobras dos outros.

Ao longo de décadas garimpando pelo sertão cearense, nas casas de parentes, amigos e desconhecidos que abriram suas portas e tesouros, tio Robério foi resgatando a memória daquela gente simples e as lembranças da infância e adolescência que teimam em se apoderar de seu ser. Percorro aqueles objetos e me dou conta de que eles ali estão contando histórias, a minha história.

Lá está minha antiga máquina de escrever Olivetti, companheira de desafios quixotescos pelos sertão para contar histórias e fatos do dia a dia. É quixotesco mesmo. Embrenhávamos no mato, subíamos serrotes, descíamos ribanceiras à procura de riachos, famílias isoladas, gente sofrida. Cortávamos estradas, veredas para falar da fome e sede nos tempos de seca braba; corríamos léguas em estradas carrocáveis para nos defrontar com enchentes e desabrigados. E por aí vai: invasões de terras; políticos prometendo mundos e fundos em período eleitoral; abalos sísmicos, sonhos interrompidos pela violência, trabalho escravo, corrupção etc.

Presente de meu pai, o objeto desapareceu de casa. Só agora descubro que minha mãe, no ato de bravura e desprendimento, deu a velha máquina ao cunhado. Acreditando ela que estaria segura. “Não se perderia”, argumentou ao ser questionada do feito.

Minha memória afetiva se apropria do rádio de pilha semelhante ao que embalava as noites escuras da infância em Saboeiro na casa do avô Manoelito. O ranço do passado está presente. Voltam as imagens da menina franzina correndo entre os cômodos da casa do século XIX de seus avós ou desafiando o medo de altura ao se debruçar em uma das janelas do casarão onde vivia com os pais e irmãos para apreciar, lá do alto, o movimento no mercado público e na praça da Igreja.

As imagens se misturam aos objetos. As vivências estão emolduradas nos mais belos sentimentos. Pessoas queridas voltam do passado para gritar o seu presente e brincar de esconde esconde na busca do futuro.




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