quinta-feira, 23 de junho de 2011

Festa de aniversário


A família foi pouco a pouco se formando. Há 20 anos vinha o primeiro. O choro forte anuncia o seu chegar. Lá longe, o pipocar de fogos celebra o São João. A cidade em festa. Noite à dentro, a sanfona, o triângulo e a zabumba animam os brincantes nas quadrilhas juninas. Na maternidade, silêncio cheio de rebuliço.


Menino graúdo, olhos e cabelos pretos, sedento, briga para não abandonar as entranhas da mãe. Apartado, vai logo reclamando. Esperneia contra aquela invasão. Difícil o seu calar, mas basta o aconchego materno e está ele espreguiçando o seu dolce far niente.


O pobre pai corre de um lado para outro nos corredores em busca de notícias. A avó, aflita, debulha terços. O avô, experimentado pela vida, sorrir a alegria dos vitoriosos. Chega o quinto neto me menos de quatro anos.


Noite alta e a criança sorve a vida no peito salvador da mãe. Nasce com o cordão umbilical enrolado no pescoço. A mãe pensa no nome de João. A crendice popular assegura que o santo protege de qualquer desastre todos que nascem enlaçados. O pai, João, resiste. Nem pensar, o menino será Victor, vitória certa.


Duas décadas se passam e o jovem Victor alça voo em direção às estrelas. Troca os projetos da engenharia mecânica pela relatividade da física, que o levará a astronomia. Os terríveis e temíveis cálculos matemáticos se intrometem em seu cotidiano, confundindo a cabeça dos que com ele convive.


Na maturidade da juventude, luta para impedir que laços familiares sejam cortados. Na ausência do pai, divide com a mãe a responsabilidade pela educação do irmão caçula e a atenção a irmã, vizinha no nascer. Neto prestativo acompanha a avó nas consultas médicas e visitas aos parentes. Filho querido e mui amado festeja hoje o renascer diário. Melhor dizendo, presenteia à mãe e aos dois irmãos a alegria do seu viver. É a presença de Deus em nosso lar.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Velhas doenças!



Abril de 1973. Tarde ensolarada na cidade de Saboeiro. Crianças correndo desesperadas tentando salvar o resto de dignidade. Ou seria, a própria vida. Naquele longínquo ano, os alunos do Grupo Escolar Olavo Oliveira procuram escapar da danada da injeção que homens sisudos e mulheres emburradas aplicavam nos braços dos que passavam a sua frente. As principais vítimas, os pequeninhos, que não conseguiam se desviar dos intrusos. Os mais velhos, atropelavam-se pelos corredores, pulavam as janelas em busca de socorro.

O alvoroço era tamanho. Nem mesmo os professores e a autoritária diretora conseguiam acalmar a garotada. Não, não era uma experiência científica ou massacre de criancinhas. Estava o grupo escolar recebendo técnicos do Programa Nacional de Imunizações, criado naquele ano pelo Ministério da Saúde, para erradicar a febre amarela urbana e a varíola.


Primeira campanha de vacinação na cidade. O atraso era grande. As doenças infecciosas imperavam por aquelas bandas. Sarampo, caxumba, varíola, coqueluche, dordolho atacavam meninos, velhos e adultos. Ninguém escapava. Para alguns, a prevenção chegava na hora certa. Para outros, atrasada. Pais perderem seus rebentos sem nenhuma assistência. Médico era coisa rara. Imunização, palavra feia, ou melhor, desconhecida.


Os surtos iam e vinham a cada nova estação. Dona Dolores, velha parteira de Saboeiro, benzia seus moradores com galhos de peão roxo para espantar a morte. Às doenças, amaldiçoava cada uma debaixo do pé de oiticica que tomava a frente de sua casa. Das “malditas”, como costumava falar, escapei somente da coqueluche e varíola. Naquele ano, eu e minha irmã caímos de cama com sarampo. Febre alta, dor no corpo, pele manchada e medo, muito medo de morrer. Dividíamos a atenção de minha mãe, que se desdobrava em carinhos e remédios.


Guaraná e bolacha cream cracker amenizavam o sofrimento. Eram o melhor remédio. Dias trancadas no quarto abafado para não pegar friagem. Cobertores para acalmar a febre. Banho? Só de álcool. Meses após a cura, caxumba.Desta vez, eu e meu irmão. Nada de andar pela casa ou fazer extravagância para a papeira não descer.


E o dordolho? Bastava um pegar, para todos amanhecerem com os olhos grudados,lacrimejando. O sol raiava e lá estávamos gritando por socorro da mãe. Abrir os olhos, tarefa difícil. O remédio, lavá-los bem com água corrente, enxugar com algodão e passar a pomada penicilina. Para garantir a cura, reza de dona Dolores.


A peleja e desinformação em Saboeiro eram de espantar. Na fuga da vacinação, levei a melhor. Ou seria, a pior. Miúda e ligeira fugi da agulha. Na época, sentia-me orgulhosa. Semanas de conversa sobre o corrido. Contávamos quem havia sido vacinado, como “salvamos”  nossa pele daquele momento de horror, e por ai vai.


Dois anos depois, estava eu numa enorme fila em frente ao posto de saúde do Crato para me vacinar contra a meningite, que estava matando no Ceará. Desta vez, o medo da doença foi mais forte que a covardia de enfrentar uma agulhada.

sábado, 18 de junho de 2011

Escolhas!



Na semana passada travei acalorada discussão com uma pessoa muito querida sobre família, dinheiro, poder. Em geral, concordamos em quase tudo, mas quando se trata de renúncia e realizações, pensamos e agimos completamente diferentes. É o duelo entre a razão e a emoção, a consciência e o coração. Ele defende que para realizar os sonhos, a pessoa precisa fazer escolhas. Questiono o preço a ser pago. Geralmente, a conta é cobrada aos filhos.

 Eu, mãe por escolha e opção, não abro mão de sonhar os sonhos de meus rebentos, sofrer o seu sofrer, gargalhar o seu riso, chorar a sua dor, ser feliz com a sua felicidade.  Radical e intransigente assumo, de forma incondicional, minha responsabilidade sobre a formação moral, ética, cultural, religiosa desses seres que escolhi para, com eles, somar minha vida.

E não me venham com o discurso de que pai e mãe têm vida independente e que as crias são uma coisa à parte. Mais uma obrigação na já atribulada existência. Qual nada. Filhos são o todo. O resto, detalhes. Poder, dinheiro, fama, reconhecimento, apenas conseqüência. 

São ridículas as desculpas de profissionais bem sucedidos e vitoriosos de que estão cada vez mais ausentes porque precisam trabalhar muito para garantir o conforto da família, que se traduz em carrões, viagens duas ou três vezes ao ano para o exterior, jóias, roupas de grife. Perguntaram aos seus se é isso que eles querem? Certamente a criança trocaria o videogame de última geração pelo joguinho despretensioso com o pai na pracinha ali ao lado. E a adolescente. Será que ela não prefere ter a mãe ou o pai sentado (a) à mesa de jantar todos os dias ao invés do cartão de crédito? Na verdade, esses senhores e senhoras se empenham na busca desenfreada do ter. E para justificar essa loucura, se agarram na mentira do bem-estar que acreditam proporcionar aos pequenos e indefesos.

Na discussão, meu amigo apresenta argumentos para explicar os homens que renunciam a convivência com os filhos em nome do sucesso profissional. Perdem o inseguro primeiro passo, ouvir o balbuciar “papai” e mamãe, o primeiro dia na escola. Sempre o primeiro, mas ao longo da vida deixam de viver as segundas, terceiras, quartas... vitórias e derrotas. Mas isso é pequeno diante das grandes conquistas e do que oferecem à humanidade, defende ele.

-O que seria do planeta se não fossem esses homens? Sem eles, não teríamos conquistado o espaço, não desvendaríamos os mares, não teríamos computadores. Ajudam instituições, mantêm escolas, hospitais

E sai desfilando as conquistas tecnológicas da humanidade no último século, da importância dessas pessoas para a sociedade. Esquece de falar sobre o preço social do esgaçamento familiar. E vou além. Por me considerar uma pessoa relativamente bem informada, não entendo e não quero compreender, que o bem-estar do pai ou da mãe seja mais importante que a felicidade do filho ou filha.

Em meio à discussão, falamos da dedicação filial e do amor extremando, que levam homens e mulheres (graças a Deus ainda são muitos) a abrir mão de sonhos de consumo pela felicidade de seus rebentos. No fim da viagem, continuamos com nossos pontos de vista. Nesse turbilhão de questionamentos, defesas, risos e ironias lembrei-me do escritor argentino Jorge Luís Borges. No poema “Instantes”, ele faz uma reflexão sobre o que realmente queremos em troca de valores que nem sempre são os nossos ou que os assumimos como prioridade em nossas vidas.

Convido-os a entrar nos instantes de Borges e avaliar se é hora de virar o taxímetro interior, não importando exatamente qual o tempo ideal para percebermos com mais lucidez os detalhes da vida. Que tal planejá-la, ou ainda, replanejar do ponto que se encontra, lembrando que somos o seu diretor e que só acontece o que permitimos. Pensar a respeito do que estamos fazendo, pode modificar o epílogo.


Instantes
Se eu pudesse viver novamente a minha vida, 
na próxima trataria de cometer mais erros
Não tentaria ser perfeito; relaxaria mais
Seria mais tolo do que tenho sido; na verdade,
bem poucas coisas levaria a serio 
Seria menos higiênico 
Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios. 
Iria a lugares onde nunca fui, 
tomaria mais sorvetes e menos lentilhas, 
teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que vivem sensata e produtivamente 
cada minuto de sua vida; claro que tive momentos de alegria. 
Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos. 
Porque, se não sabes, disso é feita a vida, só de momentos, 
não percas o agora. 
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro 
uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas; 
se eu voltasse a viver, viajaria mais leve. 
Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço
 no começo da primavera, e continuaria assim até o fim do outono. 
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres 
e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vida pela frente. 
Mas vejam, tenho 85 anos 
e sei que estou morrendo...

terça-feira, 14 de junho de 2011

Carta não enviada

Num mundo onde todas as formas de envolvimento pessoal parecem não ter tanta importância, no qual o amor se tornou questão de conveniência, sinto que a história vale a pena ser contada. Talvez seja a lua, entrando pela janela de meu quarto, convidando-me a viajar no tempo e reencontrar Valquíria.


Não fomos apresentadas. O primeiro e único encontro, por meio de uma “carta-declaração”, amarelada pelo tempo e por tantas mãos que a folheou. Na época, transcrevi o documento e guardei junto aos rascunhos de entrevistas. Li e reli muitas vezes, talvez tentando desvendar as suas razões. Como se possível fosse. Como diz Renato Russo ”Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?”

Nas inúmeras matérias sobre pessoas, vidas, sonhos, desilusões, lutas, a história de Valquíria, contada por sua irmã, fez-me refletir sobre a mania que temos de rotular como piegas os sentimentos mais profundos e genuínos. Acredito que se Robert James Waller tivesse encontrado a carta-declaração talvez pensasse, lá com seus botões, que o possível amor impossível de Robert Kincaid e Francesca Johnson estaria sendo revivido. Não mais em Iowan, próximo as pontes de Madison, mas no interior do Ceará, por uma professora e um médico.  

Não trago sentimentos de culpa; não tenho medo de ser magoada ou de magoar; não sou frágil e nem forte; sou uma mulher apaixonada por um homem desafiador, vaidoso, otimista. Um homem que não é herói ou salvador, apenas homem, humano”. O trecho encerra um dos parágrafos da carta, escrita em 1963, talvez sob o luar. Prefiro imaginar ela sentada no jardim de casa, entorpecida pelo perfume das roseiras.

A história começa bem antes.

Estamos em 1959. A viuvez bate à porta de Valquíria, mãe de três filhos. Os medos e incertezas a impelem a procurar emprego. Intelectual e com excelente currículo, é aceita na melhor escola da cidade. Tranquila e sempre alegre, vivia para a família e o trabalho. Em uma manhã ensolarada, cruza com Fernando ou teria sido ele que atravessou o seu caminho? Não sei se o acaso quis assim ou foi à vida que escolheu, divagaria o poeta. Amor à primeira vista, nunca revelado à família e amigos. Anos de silêncio.

Guardou segredo por mais de 30 anos. Continuou sorridente, amiga. Criou os filhos, cuidou dos netos. Meses após sua morte, em 1990, sua irmã encontra a carta-declaração, nunca enviada ao amado. A partir daquele ano, a história correu a região. Fatos foram acrescentados para apimentar o romance. Muitos falam do rompimento, outros da fuga, da tentativa desesperada do reencontro. Os mais afoitos contam que casaram escondidos ou que ela morreu esperando o amado. O que é verdade ou lenda, não sei.

A declaração de amor escrita em letra miúda e redonda nunca foi entregue a Fernando. Ele foi embora para Santa Catarina meses após a carta ser escrita. Não poderia deixar o amor destruir seus sonhos. Tinha mulher e uma promissora carreira. A separação seria um escândalo e ele perderia prestígio. Nunca mais se ouviu falar no pobre médico, que aceitou a subjugação do orgulho e do medo. 

domingo, 12 de junho de 2011

Mais ou Menos!

Guimarães Rosa dizia que “esperar é reconhecer-se incompleto”. Liduina viveu anos incompleta. Ainda criança assistiu o padecer e a despedida da mãe pela tuberculose. Sentiu a indiferença do pai. Aos cinco anos, arribou com os três irmãos pequenos de Vitória. Quatro dias de viagem até Saboeiro. Ônibus, pau de arara, caminhão, carona.  Nenhuma palavra trocada.  O choro da caçula cortava o silêncio agonizante. Os meninos são recebidos com carinho e sorriso pela avó paterna. A velha senhora abençoa o amado filho e seus rebentos.


No dia seguinte, o homem embarca de volta para a sua vida, com a promessa de retornar aos filhos no ano seguinte. Anos de espera. Nenhuma carta ou telefonema. Aniversários sem bolo, brinquedos ou festa. Nas noites de frio, Liduina chora sob o lençol a saudade da mãe e a mágoa do pai. A pobreza da família afasta para longe o sonho da faculdade, do reencontro, da felicidade. Entre uma desilusão e outra conhece Fernando. Juras de amor, promessas, sonhos.


O rapaz decide experimentar o mundo. Embarca para o Sul do país. Quer fazer fortuna. A jovem assume seu destino: esperar. Esperar o amor. Um, dois, cinco anos, as comunicações rareando. Enquanto aguarda, trabalho na cozinha dos outros, estudo à noite. Vida de privações. De Fernando, nenhuma palavra. Liduina descobre, aos 18 anos, que havia amado e vivido errado. Não queria mais esperar a demorada cicatrização das feridas. Hora de fazer escolhas certas. Parte para a Capital com as bênçãos da avó chorosa, a saudade dos irmãos. Na bagagem, determinação.

Sete anos depois, conclui o curso de Pedagogia. Na festa, apenas três amigas. Ninguém da família. O 
convite de formatura moldura a sala de visitas da casa humilde da avó. Ensinar em dois colégios era pouco para aquela garota. Dois anos se passaram e novo certificado, Mestrado. A avó não entende. “Mas, a menina já terminou a faculdade, para que fazer isso? Ela não é formada?”, pergunta à minha tia Zuleide, primeira professora da neta. Aos 31 anos, Liduina desembarcava da Alemanha, onde defendeu tese de Doutorado.

Conquistou dignidade, respeito, garantiu estudos aos irmãos, velhice tranqüila à avó. É grata aos tios, amigos. Alçou vôo, mas continua esperando o amor filial, notícias do ex-namorado. Vitoriosa e bem sucedida, decide zerar seu passado. Encontra Fernando em São Paulo. O garoto sonhador torna-se um sem graça operário da construção civil, casado e pai de sete filhos. Não se desculpa pelos anos de espera, de sonhos perdidos.

Reencontrou o pai no ano passado. De cabelos brancos, olhos tristes, o homem enfrenta câncer no estômago. Quase 30 anos depois, pai e filha trocam o abraço perdido lá atrás. Marido, dois filhos, três irmãos, cinco sobrinhos, pai. A família de Liduina se reúne todos os anos no aniversário de nascimento da saudosa avó, que partiu para a pátria espiritual na madrugada fria de um domingo de 2008.

Hoje, Liduina leva a vida que quer viver. Ela me lembra o poema de Chico Xavier



A gente pode morar

numa casa mais ou menos,
numa rua mais ou menos,
numa cidade mais ou menos
e até ter um governo mais ou menos.

A gente pode dormir
numa cama mais ou menos,
comer um feijão mais ou menos,
ter um transporte mais ou menos
e até ser obrigado a acreditar
mais ou menos no futuro.

A gente pode olhar em volta e sentir
que tudo está mais ou menos,
tudo bem!

Mas o que a gente não pode mesmo,
nunca, de jeito nenhum:
É amar mais ou menos,
é sonhar mais ou menos,
é ser amigo mais ou menos,
é namorar mais ou menos,
é ter fé mais ou menos,
é acreditar mais ou menos.
Senão a gente corre o risco de se tornar
uma pessoa mais ou menos.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Dois amigos e o ouro branco


Eleição perdida. Hora do recomeço. Juntar os cacos, levantar a cabeça e tocar a vidinha, naqueles dias cheios de sobressaltos e dívidas, muitas dívidas. Com o banco, amigos. O homem sonhou o sonho do melhor amigo e cunhado de acabar com o domínio político do adversário. Acreditou ser prefeito da cidade e fazer um novo traçado no destino de sua gente.


O sustento vinha da fazenda e do salário da esposa, diretora do grupo escolar. Naquele ano, as chuvas foram escassas, quase nada tirou da terra. Precisava de milagre para salvar o seu querido Mamoeiro,pedaço de chão onde nasceu e criou raízes. Única herança do pai, que o ensinou a amar e respeitar aquele lugar tórrido, sofrido, que renascia a cada inverno.

Após o pleito eleitoral, mudou-se de mala e cuia para a fazenda, levando a esposa chorosa e os filhos pequenos. Dias de incertezas e noites de rezas. Ladainhas ecoavam pelo terreiro da casa grande, novenas tiradas para santos de devoção, missas e comunhão. Para garantir o milagre, promessas. A cunhada, mais afeita a penitências, debulhava o terço ajoelhada na pedra quente ao meio dia em ponto, debaixo de sol escaldante. Para ser ouvida com mais rapidez, braços abertos nas 50 Avé Marias, cinco Pai Nosso, Salvé Rainha e a Consagração a Nossa Senhora. Não esquecia as jaculatórias. Errar um mistério? Nem pensar.

Novembro de orações e roga a Deus. Quando dezembro chega, o amigo anuncia nova aventura.Convite aceito. Embora amargurado, o valente sertanejo nunca desiste. Talvez, conhecido tivesse de Ernest Hemingway concordaria de que “um homem pode ser destruído, mas não derrotado”.

O cunhado-amigo vendeu o último bem, um jeep Willians, pediu empréstimo ao sogro, comprou as sementes, contratou trabalhadores. Hora de arar e alimentar a terra com sementes de algodão. Trabalho de sol a sol. Interrupção, só para olhar o céu em busca de sinal de Deus. As nuvens começam a se formar, relâmpagos e trovoadas anunciam a chegada da chuva. À noite, homens, mulheres e crianças genuflexos oram pelo milagre.

Dia de Reis traz alegria e esperança. A fazenda acorda de madrugada. O grito do chefe da família assusta a casa. Do alpendre, a família avista o tão sonhado milagre. O baixio está todo branco. O algodão floriu. De longe, parece neve. Festa em Mamoeiro. Salvação.

Uma semana depois, caminhões cruzavam o lugar levando o ouro branco para Iguatu e de lá Fortaleza, São Paulo, Estados Unidos, Europa.... Não importa. Garantiu o pagamento das dívidas e reserva para um ano de sobrevivência. O homem de mãos calejadas pela luta na terra abraçou o amigo e prometeu continuar sonhando os seus sonhos. 


Naquele momento, poderiam pensar em Santo Agostinho e o seu caminhar. “Mesmo que tu já tenhas feito uma longa caminhada, há sempre um caminho a fazer”. E os dois amigos fizeram juntos uma longa caminhada, de vitórias e derrotas, mas sempre olhando para o baixio do Mamoeiro. 

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Empréstimo a Deus

Região árida, sol inclemente, miséria e fome dominam o cenário daquele lugar tórrido. A vida em Saboeiro passa devagar, preguiçosa. O ponteiro do relógio teima em não querer andar. Os homens se esgueiram pelas esquinas da cidade, sem muito que fazer. Às mulheres, cabe debulhar terços, rezar ladainhas, de preferência em latim para chegar mais rápida a Deus, fazer promessas difíceis de serem cumpridas. Quanto maior o sacrifico mais rápido o atendimento.

A cidade vinha de dois anos de seca. A fome tirando a dignidade de homens e mulheres valentes. Velhos, adultos e crianças perambulam à espera do milagre. Os pequenos saciados pelos peitos das mães esquálidas, quase sem forças para andar. Numa manhã de sábado, dia de feira, alvoroço lá em casa. Um grupo de trabalhadores rurais estava chegando para saquear o comércio e, quem sabe, as casas.

“Fechem as portas, crianças para dentro. Ninguém sai”. A ordem partia da cozinha. Era Telma, nossa empregada, moça gorda e gestos fortes, preparando-se para o pior. Como obedecê-la?, impossível. Enquanto minha irmã Suzana aceita acompanhar tudo de uma das janelas no segundo andar da casa, corremos, eu e meu irmão mais velho Carlos, para a casa do tio Valdizar, onde os homens se reuniram para decidir o que fazer com as famílias famintas que vinham da zona rural em busca de socorro.

Minha mãe Lúcia ao nos ver foi logo ralhando, nos mandando de volta. Para nossa sorte, antes de chegarmos à soleira da porta, o cortejo entrava na cidade. O jeito foi ficar ali e assistir, o que considero um dos maiores ensinamentos de solidariedade e coragem. Mais de 500 pessoas se arrastavam, determinados a pegar o que lhes era de direito: alimento.

Horas de conversa entre meu pai Chico, tio Valdizar, Chico Nabor (rico comerciante), o ex-prefeito Ademor, Juarez e um grupo de sete ou oito agricultores. Crianças, só eu e meu irmão. O prefeito não estava na cidade. Havia viajado com a família para a Capital três dias antes. Lembro-me de seu Maciel, um senhor de quase 70 anos, cabelos brancos, mãos calejadas, rosto queimado pelo sol. Resultado de uma vida de trabalho na roça, arando a terra, plantando e colhendo o sustento da família. Nos dias de feira, ia sempre lá a casa conversar com minha mãe, ensinar uma oração, levar coalhada, mel.

Seu Maciel me fascinava. Sempre sereno, nunca reclamava da dureza da vida. Homem de muita fé. Na reunião, manteve a calma, mas decidido: não aceitaria que os seus voltassem para casa de mãos vazias. Estava disposto a tudo. Argumentos pra cá, lamentações pra lá e seu Maciel inflexível. Eu já agoniada, estava para interromper aquele conversê dos homens. Dê logo às sacas de arroz, feijão, rapadura, a farinha. Esse povo tá morto de fome.

Decisão tomada. Meia hora depois, um caminhonete parava em frente à praça com os alimentos. Seu Maciel e outros quatro homens começaram a distribuição. Marli, mulher de pouco mais de 40 anos com aparência de 60 com quatro filhos pequenos e mãe viúva de 80 anos para cuidar, foi uma das últimas da fila. Esperou que os homens e mulheres famintas fossem logo atendidas. Esperar parece ser sua sina. Aguarda a volta do marido e filho adolescente que haviam arribado para São Paulo no ano anterior tentar a sorte.Notícias, de vez em quando e promessas da volta.

Cada família teria direito a alguns quilos de mantimentos, o que asseguraria 15 dias de comida na panela. Início da tarde, todos se preparavam para voltar. Faltam apenas os líderes do movimento receber a sua partilha. Seu Maciel, entregou a sua parte a Marli. Não entendi. Ele, velho, cansado, com mulher, filhos e netos para sustentar e abre mão do que é seu por direito.

O carro que trouxe o sustento, levaria de volta parte dos invasores. O restante, viajou em um caminhão alugado pelos comerciantes da cidade. Logo que seu Maciel se instalou na cabine do automóvel não me contive. Corri e da porta gritei: “por que o senhor deu a sua parte para aquela mulher?’” . Ele sorriu, colocou a cabeça pra fora e respondeu: “ela precisa mais do que eu. Não morrerei de fome. Sábado volto e almoço na sua casa”. Zangada, retruquei: “ah, dá o que é seu e depois vai comer lá em casa”. Sonora gargalha ecoou o que me deixou ainda com mais raiva. Então, o velho homem lembrou: “menina, quem dá aos pobres, empresta a Deus”.

domingo, 5 de junho de 2011

Tradição escrava


Minha infância foi rica em mistérios e lendas. Saboeiro era o cenário perfeito no imaginário da menina que tudo queria saber e entender. Para a criação do filme, perguntas inundavam a família e irritava irmãos e primos mais velhos. A paciência acabava logo na segunda ou terceira: “Quem é a mula sem cabeça que inferniza os aventureiros teimosos em passar na grota do pecado em noite de lua cheia?” “E os dobrões, encontrados nas areias do rio Jaguaribe por um grupo de homens de bem, vieram de onde?” “Por que não posso sair de casa quando a Chica está bêbada?”. Por ai vai.

Minha mãe, pacientemente, tentava explicar contando histórias do tempo do ronco sobre botijas, escravos correndo léguas com ouro e jóias amarrados na cintura fugindo de saqueadores. Dias de fome e sede protegendo a fortuna de seus donos, que os pagava com pedaço de carne seca e alguns dias de descanso. O que ninguém conseguia convencer a criança era a divisão entre seus moradores. Na pequena cidade, havia o clube dos brancos e o de negros, a praça para os brancos e a praça para os negros, a festa dos brancos e a festa dos negros.

Como entender que Lindô, madrinha de São João de meu irmão Carlos, não poderia freqüentar os mesmo lugares que nós. Na Igreja, a Maria das Dores teria de ficar nos últimos bancos do templo ou próxima ao altar de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Brancos de um lado, pretos do outro. A mistura só na cozinha, de onde saía a galinha à cabidela, o bolo de fubá, o cozido de carneiro, o doce de banana em rodelas, a curimatã com pirão para saciar a fome dos adolescentes após horas de caminhada dos Caldeirões a Saboeiro, subindo e descendo serrotes, enfrentando sede, discutindo sobre os paqueras, começo e fim de namoros banhados pelo Jaguaribe.

No casarão de meus avós, Lindô cuidava das crianças sob olhares complacentes de vó Mundinha e da tia Águeda. Os dias eram sempre uma festa para a moça de 17 anos, que se agarrava a vida como se a qualquer momento escorresse entre seus dedos. Apaixonada pelo primeiro namorado, marcava encontros furtivos. Para driblar a vigilância da família que não aceitava o namoro, cabia a mim, menina de oito anos, rabiscar os bilhetes e entregá-los a Rodrigo.

Em troca, aulas de dança na cozinha depois do almoço. Enquanto os adultos tiravam a cesta, estava eu pisando os pés de minha professora, rodopiando feito pião. Na vitrola, Luiz Gonzaga, Benito de Paula, Martinho da Vila, Odair José, Roberto Carlos. “Vamos lá, Deta, endireita a espinha; requebra a cintura, levanta o rosto, olhe nos olhos”, ensinava ela.

Eu, branquela magra, miúda, olhos grandes e cabelos assanhados, sonhava ser igual a Lindô: negra alta, pernas torneadas, vivos olhos pretos, cintura fina. Em comum, a alegria. Estávamos sempre sorrindo e bagunçando. Pensar naquele tempo me remete a Rubem Alves que ensina “a amizade acontece quando os homens concordam sobre coisas pequenas”.

Com Lindô, entrei no maravilhoso universo dos negros de Saboeiro. Reisados, ladainhas cantadas em latim, novenas, missas na capela de Nossa Senhora de Fátima na Ruinha – avenida sem calçamento reduto de negros e de famílias humildades vindas na zona rural -, guisados. O que me emocionava mesmo era o São Gonçalo, dança realizada na Idade Média no interior das Igrejas de Portugal em homenagem ao santo homônimo.

Trazida ao Brasil pelos colonizadores portugueses, em Saboeiro foi incorporada pela comunidade negra. Noite de 10 de janeiro, festa na cidade. Às 20 horas em ponto, ricos, pobres, brancos, negros e pardos se acotovelam no terreiro de barro batido em frente à casa do Antônio Luiz. Os tambores anunciam o início dos festejos. Homens e mulheres iniciam a dança. A música cantada pelos negros entram por nossos ouvidos, arrepiando a alma. Puxo Lindô num canto e insisto para ela dançar comigo. “Menina, deixa pra lá. Isso é coisa para adultos e negros”. Em Saboeiro, os bancos não se misturavam. No máximo, ficavam na assistência com inveja daquela gente alegre e cheia de vida.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Dona Mariazinha


A merenda escolar é o principal incentivo nas escolas públicas Brasil afora. Quando falta, o que ocorre frequentemente, a grande maioria das crianças troca a sala de aula pela mendicância nas ruas das grandes cidades. Na minha infância, a merenda era em casa mesmo. Na hora do recreio, descíamos correndo as ladeiras de Saboeiro para comer uma banana, pedaço de pão ou apenas tomar um copo d’água. Mal falávamos com o povo de casa. Era preciso voltar logo para brincar no pátio do grupo escolar Olavo Oliveira. Os mais afortunados, compravam o alfenim da Herotildes, por míseros dez centavos.

Em plena vigência da ditadura militar, o patriotismo exacerbava. Nas quartas-feiras, lá estavam os alunos debaixo de um sol escaldante das 9 horas cantando o Hino Nacional. Eram fiscalizados bem de pertinho pela diretora, minha tia Zuleide, e pelas professoras. Apesar da falta de estrutura, a biblioteca se resumia a uma estante com uns 50 livros, o Olavo Oliveira tinha muitos atrativos. Aulas práticas, incentivo aos esportes, participação nas festas religiosas, reuniões de pais e mestres.

O papel transformador da educação dita formal ocorreu em minha vida quando tinha sete anos e cursava a primeira série. A responsável, a temida e odiada dona Mariazinha, minha professora.  Rígida na formação dos alunos, não admitia conversas em sala de aula. Tirar a chinela do pé, constrangimento e castigo na certa. Ela recolhia o calçado e só o devolvia no fim da manhã. Sorriso da educadora, só com ‘Bom’ a ‘Ótimo’. Nota abaixo disso, olhar sisudo e repressor.

Certo dia, recusei-me ir à escola porque a farda estava suja. Minha mãe me arrumou com o melhor vestido e a sandália novinha, comprada em Iguatu. Tentou explicar a importância de estudar. Eu, renitente, estava decidida: sem farda, nada de aula. Ela, então usou outro argumento, bem mais convincente. Duas fortes chineladas e puxões nos cabelos. Arrastou-me ladeira acima até o grupo escolar. Entrei na classe chorando, sob a ameaça de apanhar de palmatória.

Dona Mariazinha assistiu a tudo calada. Esperou minha mãe sair e foi logo me chamando para acompanhá-la. Pensei com alegria, vou ficar de castigo na diretoria. Consegui, não assistirei aula. Para meu espanto, saímos da escola em direção a uma rua com casas simples. Em frente a um casebre, pulou a cerca que murava o local. Repeti o seu gesto, prontamente. Na sala-cozinha nos deparamos com três crianças – tinham entre sete e 11 anos - sentadas no chão de barro, com cadernos e livros espalhados pelo lugar. No quintal, a mãe lavando uma trouxa de roupas de uma família da cidade.

Espantada não entendia o que estava fazendo ali. Foi então que a professora olhou-me e disse secamente”: “olhe para esses meninos. Fazem o maior sacrifício para estudar”. Eles dividiam um único lápis. Enquanto o caçula rabiscava o alfabeto, a menina mais velha lia o enunciado do exercício. O do meio aguardava o pequenininho terminar de responder a pergunta para só então fazer o seu exercício.

Fiquei olhando a cena que se repetiu por várias vezes. Dona Mariazinha olhou nos meus olhos e disparou: “E você fazendo birra por causa de uma farda. Enquanto meninos da sua idade lutam para aprender, você joga fora as oportunidades”. Envergonhada sai daquela casa humilde e nunca mais perdi um só dia de classe. E, o mais importante, a valorizar cada oportunidade de conhecimento. Obrigada, dona Mariazinha.    

Minha infância foi rica em mis
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