domingo, 5 de junho de 2011

Tradição escrava


Minha infância foi rica em mistérios e lendas. Saboeiro era o cenário perfeito no imaginário da menina que tudo queria saber e entender. Para a criação do filme, perguntas inundavam a família e irritava irmãos e primos mais velhos. A paciência acabava logo na segunda ou terceira: “Quem é a mula sem cabeça que inferniza os aventureiros teimosos em passar na grota do pecado em noite de lua cheia?” “E os dobrões, encontrados nas areias do rio Jaguaribe por um grupo de homens de bem, vieram de onde?” “Por que não posso sair de casa quando a Chica está bêbada?”. Por ai vai.

Minha mãe, pacientemente, tentava explicar contando histórias do tempo do ronco sobre botijas, escravos correndo léguas com ouro e jóias amarrados na cintura fugindo de saqueadores. Dias de fome e sede protegendo a fortuna de seus donos, que os pagava com pedaço de carne seca e alguns dias de descanso. O que ninguém conseguia convencer a criança era a divisão entre seus moradores. Na pequena cidade, havia o clube dos brancos e o de negros, a praça para os brancos e a praça para os negros, a festa dos brancos e a festa dos negros.

Como entender que Lindô, madrinha de São João de meu irmão Carlos, não poderia freqüentar os mesmo lugares que nós. Na Igreja, a Maria das Dores teria de ficar nos últimos bancos do templo ou próxima ao altar de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Brancos de um lado, pretos do outro. A mistura só na cozinha, de onde saía a galinha à cabidela, o bolo de fubá, o cozido de carneiro, o doce de banana em rodelas, a curimatã com pirão para saciar a fome dos adolescentes após horas de caminhada dos Caldeirões a Saboeiro, subindo e descendo serrotes, enfrentando sede, discutindo sobre os paqueras, começo e fim de namoros banhados pelo Jaguaribe.

No casarão de meus avós, Lindô cuidava das crianças sob olhares complacentes de vó Mundinha e da tia Águeda. Os dias eram sempre uma festa para a moça de 17 anos, que se agarrava a vida como se a qualquer momento escorresse entre seus dedos. Apaixonada pelo primeiro namorado, marcava encontros furtivos. Para driblar a vigilância da família que não aceitava o namoro, cabia a mim, menina de oito anos, rabiscar os bilhetes e entregá-los a Rodrigo.

Em troca, aulas de dança na cozinha depois do almoço. Enquanto os adultos tiravam a cesta, estava eu pisando os pés de minha professora, rodopiando feito pião. Na vitrola, Luiz Gonzaga, Benito de Paula, Martinho da Vila, Odair José, Roberto Carlos. “Vamos lá, Deta, endireita a espinha; requebra a cintura, levanta o rosto, olhe nos olhos”, ensinava ela.

Eu, branquela magra, miúda, olhos grandes e cabelos assanhados, sonhava ser igual a Lindô: negra alta, pernas torneadas, vivos olhos pretos, cintura fina. Em comum, a alegria. Estávamos sempre sorrindo e bagunçando. Pensar naquele tempo me remete a Rubem Alves que ensina “a amizade acontece quando os homens concordam sobre coisas pequenas”.

Com Lindô, entrei no maravilhoso universo dos negros de Saboeiro. Reisados, ladainhas cantadas em latim, novenas, missas na capela de Nossa Senhora de Fátima na Ruinha – avenida sem calçamento reduto de negros e de famílias humildades vindas na zona rural -, guisados. O que me emocionava mesmo era o São Gonçalo, dança realizada na Idade Média no interior das Igrejas de Portugal em homenagem ao santo homônimo.

Trazida ao Brasil pelos colonizadores portugueses, em Saboeiro foi incorporada pela comunidade negra. Noite de 10 de janeiro, festa na cidade. Às 20 horas em ponto, ricos, pobres, brancos, negros e pardos se acotovelam no terreiro de barro batido em frente à casa do Antônio Luiz. Os tambores anunciam o início dos festejos. Homens e mulheres iniciam a dança. A música cantada pelos negros entram por nossos ouvidos, arrepiando a alma. Puxo Lindô num canto e insisto para ela dançar comigo. “Menina, deixa pra lá. Isso é coisa para adultos e negros”. Em Saboeiro, os bancos não se misturavam. No máximo, ficavam na assistência com inveja daquela gente alegre e cheia de vida.

3 comentários:

  1. Havia uma espécie de apartheid em Saboeiro? Mas, por que o espanto meu, se sei que ele acontece o tempo todo nessa sociedade que se orgulha de ser miscigenada, mas que teme assumir suas raízes predominantemente negras?

    Abs.

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  2. ô texto bonito dona Suzete. Fico é besta quanta coisa guardamos dentro de nós, quando apenas reproduzimos o discurso dos outros. Ainda bem que essa Joana D´Arc entrou na sua vida. Bjs.

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  3. Aliás, ainda bem que essa Joana D´Arc entrou nas nossas vidas. Bjs

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