quarta-feira, 1 de junho de 2011

Dona Mariazinha


A merenda escolar é o principal incentivo nas escolas públicas Brasil afora. Quando falta, o que ocorre frequentemente, a grande maioria das crianças troca a sala de aula pela mendicância nas ruas das grandes cidades. Na minha infância, a merenda era em casa mesmo. Na hora do recreio, descíamos correndo as ladeiras de Saboeiro para comer uma banana, pedaço de pão ou apenas tomar um copo d’água. Mal falávamos com o povo de casa. Era preciso voltar logo para brincar no pátio do grupo escolar Olavo Oliveira. Os mais afortunados, compravam o alfenim da Herotildes, por míseros dez centavos.

Em plena vigência da ditadura militar, o patriotismo exacerbava. Nas quartas-feiras, lá estavam os alunos debaixo de um sol escaldante das 9 horas cantando o Hino Nacional. Eram fiscalizados bem de pertinho pela diretora, minha tia Zuleide, e pelas professoras. Apesar da falta de estrutura, a biblioteca se resumia a uma estante com uns 50 livros, o Olavo Oliveira tinha muitos atrativos. Aulas práticas, incentivo aos esportes, participação nas festas religiosas, reuniões de pais e mestres.

O papel transformador da educação dita formal ocorreu em minha vida quando tinha sete anos e cursava a primeira série. A responsável, a temida e odiada dona Mariazinha, minha professora.  Rígida na formação dos alunos, não admitia conversas em sala de aula. Tirar a chinela do pé, constrangimento e castigo na certa. Ela recolhia o calçado e só o devolvia no fim da manhã. Sorriso da educadora, só com ‘Bom’ a ‘Ótimo’. Nota abaixo disso, olhar sisudo e repressor.

Certo dia, recusei-me ir à escola porque a farda estava suja. Minha mãe me arrumou com o melhor vestido e a sandália novinha, comprada em Iguatu. Tentou explicar a importância de estudar. Eu, renitente, estava decidida: sem farda, nada de aula. Ela, então usou outro argumento, bem mais convincente. Duas fortes chineladas e puxões nos cabelos. Arrastou-me ladeira acima até o grupo escolar. Entrei na classe chorando, sob a ameaça de apanhar de palmatória.

Dona Mariazinha assistiu a tudo calada. Esperou minha mãe sair e foi logo me chamando para acompanhá-la. Pensei com alegria, vou ficar de castigo na diretoria. Consegui, não assistirei aula. Para meu espanto, saímos da escola em direção a uma rua com casas simples. Em frente a um casebre, pulou a cerca que murava o local. Repeti o seu gesto, prontamente. Na sala-cozinha nos deparamos com três crianças – tinham entre sete e 11 anos - sentadas no chão de barro, com cadernos e livros espalhados pelo lugar. No quintal, a mãe lavando uma trouxa de roupas de uma família da cidade.

Espantada não entendia o que estava fazendo ali. Foi então que a professora olhou-me e disse secamente”: “olhe para esses meninos. Fazem o maior sacrifício para estudar”. Eles dividiam um único lápis. Enquanto o caçula rabiscava o alfabeto, a menina mais velha lia o enunciado do exercício. O do meio aguardava o pequenininho terminar de responder a pergunta para só então fazer o seu exercício.

Fiquei olhando a cena que se repetiu por várias vezes. Dona Mariazinha olhou nos meus olhos e disparou: “E você fazendo birra por causa de uma farda. Enquanto meninos da sua idade lutam para aprender, você joga fora as oportunidades”. Envergonhada sai daquela casa humilde e nunca mais perdi um só dia de classe. E, o mais importante, a valorizar cada oportunidade de conhecimento. Obrigada, dona Mariazinha.    

Minha infância foi rica em mis

2 comentários:

  1. Histórias de escola sempre me encantam. Eu não, mas meus irmãos recebiam, na hora do recreio e a muiro contragosto, a visita do Vidui, um rapaz que foi morar lá em casa ainda garoto e saiu casado. Na hora sagrada, ele ia pra escola de bicicleta, equilibrando um copo de liquidificador cheio de bananada ou abacatada que minha mãe fazia e mandava deixar. Pense numa vergonha... Mas taí: os dois cresceram bem gordinhos. Quando não, o mesmo motorista ia deixar eu e minha irmã, vestidas devidamente de meia e colant, na aula de balé. E se equilibrando pra não caírem os três num buraco. Pra mim as aulas de balé não serviram muito, mas as lembranças são boas demais...

    ResponderExcluir
  2. Sorte de quem teve professores que, mais que lecionar, educaram. Eu tive esse privilégio. E foram vários...

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...