sábado, 3 de dezembro de 2011

Escuridão vence o lúdico

- O palhaço o que é?


- É ladrão de mulher


Sol a pique e lá vamos nós, ladeira acima, ladeira abaixo, acompanhando a trupe do circo que acabara de chegar à cidade. Palhaço, bailarinas, acrobatas, trapezistas, mágicos e a perna de pau em procissão chamam para o espetáculo logo mais a noite.


A lona é montada na praça principal, no fim da rua Visconde do Icó. De lá se avista o cemitério Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Na fachada do mercado público, o cartaz pregado com grude (espécie de cola feita de goma e água fervendo) anuncia para as 7 da noite o início da apresentação circense.  Meia hora antes, a criançada se empoleira ansiosa pelos artistas. As adolescentes, vestidas com a roupa de domingo, sentam nas primeiras filas. Talvez sonhando com o príncipe encantado no picadeiro de terra batida. Aos adultos, cabem as desconfortáveis cadeiras de madeira pesada.


Passam das 7 horas. A meninada impaciente grita, xinga, troca beliscões e empurrões. Para acalmar os nervos, picolé de morango e algodão doce. Menina miúda me acomodo na arquibancada mais alta, ao lado de um grupo de amigas. O risco de queda é iminente. O segredo é sentar na pontinha da tábua.


Tambores anunciam o início da apresentação. Fico eu com os olhos assombrados como o salto sobre o vazio do trapezista. Seguro o fôlego quando o mágico se prepara para serrar a moça ao meio. Concluo que no circo não se pensa. Assombra-se. É a realidade de Fernando Pessoa no seu dizer que “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.


Na minha infância em Saboeiro, igual a milhares de cidades pequenas Brasil afora, o circo é semelhante à visão de vida do poeta português, “uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos”.  No lugar pobre, de rara atividade cultural, o povo se embeleza, fica bonito para, com os artistas, entrar no mundo da fantasia. O picadeiro não é realidade. É uma esperança.


Noites quentes do sertão, embalo-me nos sonhos da bailarina em atravessar majestosa o arame, encanto-me com a simplicidade dos palhaços e a liberdade do trapezista. Mas são os homens com pernas de pau que me instigam. Como correr, pular, dançar em cima daquele negócio? Quando entram no picadeiro, viajo na imaginação e tento me equilibrar naquelas pernas. Ficar acima de todos, olhar para baixo com a soberba da altura.


A gritaria do público me traz a realidade. É dado o primeiro sinal de que a cidade entrará nas trevas em meia hora. Saboeiro é iluminada por energia a gás. O motor é desligado pontualmente às 21h30min. Dois avisos são dados todas as noites, sempre no mesmo horário – 21h, 21h15min -, para dar tempo dos atrasados chegarem a suas casas. No terceiro, as luzes são apagadas até as 17h45min do dia seguinte.


Alvoroço no circo. Adultos, crianças e jovens se acotovelam para sair. Muitos passam por baixo da lona, outros pulam da arquibancada. Correria até a segurança do lar. Os artistas, surpresos, são abandonados no picadeiro. O reencontro amoroso só na noite seguinte. Pontualmente às 19 horas, sem atraso. Sob pena de o lúdico ser vencido pela escuridão.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Fim de um ciclo

Nesta semana, um ciclo se fechou em minha vida. Outro está começando. Após sete anos coordenando a editoria de Cidade do Diário do Nordeste, sai do periódico. Horas depois, muitas ligações, mensagens, solidariedade. Sinto-me compelida a me despedir de minha equipe, profissionais competentes, que se transformaram em grandes amigos, companheiros. Vivemos momentos estressantes, próprios da redação de jornal, mas também compartilhamentos alegrias, vitórias. Amizades se construíram naquele caos, conquistamos respeito. Com eles, somei experiências, conhecimento, a paixão pelo jornalismo.


Enviei à equipe essa mensagem, que compartilho com vocês. Minha amiga Erilene, leitora e incentivadora do blog, brincava que era feliz por não ter nascido em Saboeiro e, portanto, não ser citada nas postagens sobre as aventuras e desventuras do povo daquela cidade especial. Pois é, minha “cãozinha”, chega o dia do caçador. Você está nele com todas as letras.


Saio do jornal com a certeza do dever cumprido. Exerci a função de editora com muita dignidade, ética e respeito aos meus professores de universidade, aos mestres de batente, que me ensinaram a ser repórter, editora, jornalista, e aos repórteres, a quem muito devo. Muitas vezes, como diz Mozarly, “transformando limão em limonada”.


O jornalismo é a melhor invenção do homem. Essa bendita profissão permite, a nós jornalistas, enxergar a vida em sua plenitude. Através dela, vivemos experiências capazes de nos transformar em pessoas melhores, entendermos a realidade que nos cerca e da qual estamos inseridos. Dizem os estudiosos que o papel do jornalista é informar e servir como mediador. Concordo, mas acho que é muito mais. No fazer jornalístico, participamos dos sonhos, esperanças, desilusões, apegos, dores, amores... de desconhecidos, pessoas que muito provavelmente não encontraremos mais. Viramos confidentes, amigos íntimos, salvadores.


Com algumas fontes estreitamos relações de amizade, respeito. Aprendi, creio que vocês também, que o jornalista deve ser imparcial, narrar os fatos com precisão, sem nenhum envolvimento ou posição definida sobre o fato a ser registrado. Logo nas primeiras reportagens subverti essa orientação e nos 24 anos de redação de jornal vivi um misto de sentimentos: raiva, indignação, revolta, alegria, emoção.


Aprendi com uma mãe que passava fome com filhos, mas tinha uma dignidade de fazer inveja ao mais poderoso e ilustre ser neste planeta; chorei copiosamente, no meio da redação, a incerteza de um adolescente de 16 anos que ficou tetraplégico após receber um tiro da polícia. O garoto, viciado em drogas, estava arrombando uma casa para roubar quando foi abordado pelos policias.


Sou parcial, no melhor sentido da palavra. Se é que essa palavra tem outro sentido senão o de tomar partido. Como não me indignar com seres humanos lutando pela vida em hospitais sem a mínima estrutura de atendimento, crianças e adolescentes sendo destruídos pelas drogas, a falta de políticas públicas que assegurem o mínimo de dignidade a pessoa humana?


O jornalismo é mais que uma profissão, é mais que vocação, é mais que devoção. É puro amor. Amor ao ser humano, aos ideais libertários, de respeito, cidadania. Espero, de coração, ter conseguido passar para cada
um de vocês um pouco desse sentimento. Acredito que, na loucura da redação, consegui transmitir o pouco do que aprendi. Tenham a certeza que muito estou levando de cada um.


Da Martinha Bruno, trago comigo a sua postura contestadora, decidida. De Lina, a serenidade no fazer com competência, a calma, amizade. De Ivna, o astral leve, sincero, humano. Da Thays, a beleza do viver, do vivenciar experiências. Da Leda, o cuidado na apuração, o construir. Da Karla, a teimosia na investigação, do descobrir, do fuçar (muitas vezes vi, no seu fazer, a Suzete do início da carreira). Da Karol, o despertar do conhecimento.


Da “Gisele” Luana, a resposta afiada, a postura segura. Da Jéssica, o entusiasmo com o jornalismo, com o produzir. Do Adalmir, tenho comigo o respeito aos anos de batente, a experiência.  Do Raoni, a alegria do desabrochar de um grande jornalista. Thiago, a certeza de cruzar, anos mais tarde, com um grande profissional.  O João, o jornalista já pronto para novos desafios. Da Mozarly, pouco a dizer. A sua vida profissional fala por si só e dispensa qualquer elogio a esta premiadíssima amiga.


Não posso esquecer a bondade e a presteza da “madre Tereza” Janine, a amizade e carinho de Carlos Célio, a rebeldia da Paola, a intensidade do fazer de Ludmila, a cumplicidade da Manu. Do Marcelo, a amizade renovada a cada fechamento do jornal, a serenidade, a tranquilidade, e de Janayde, o destemor com o futuro. Transmitam ao Dinho (Raimundinho) o meu carinho e respeito pela pessoa maravilhosa que tive a honra de conhecer e trabalhar.


Peço licença para falar em particular sobre duas pessoas que aprendi a respeitar. A Marthinha, a minha sub (recém chegada à editoria), os meus mais sinceros agradecimentos pelo apoio e companheirismo. Menina
centrada, silenciosa, perfumada. Éramos, o queijo e a goiabada, o vinho (você) e a água (eu), a tempestuosidade (eu) e serenidade (você).


Deixei por último a “cão” Eri. Com ela, dividi emoções, raivas, medos, incertezas, revoltas, alegrias. Minha gente, aproximem-se mais dessa mulher. Ela é vida. Aproveitem e suguem o máximo dessa chefe de reportagem, que ama, vive, respira jornalismo. Início de relação tumultuada, culpa minha, confesso. Com o tempo, admiração mútua, respeito, companheirismo. Discussões na definição de pautas, direcionamento das matérias, acompanhamento dos repórteres. Nos momentos mais sérios e graves, olhar de cumplicidade, choro silencioso. Para arrematar, fugas da redação no meio da tarde para aliviar a tensão com macunzá doce, pão de queijo, leite, bolo de milho.


A todos, o meu agradecimento pela convivência generosa, respeito e dedicação. Um ciclo se fecha e outro está começando em minha vida com muita serenidade. Desejo, a cada um, sucesso, alegrias, realizações. Quando estiverem aperreados na redação, lembrem-se do que disse Gabriel Garcia Marquez:


“O jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte".

domingo, 23 de outubro de 2011

Aventuras de criança

A infância no interior, especialmente nas cidades pequenas, é um rico tesouro de aventuras, aprendizado. Trago guardado no baú das recordações, as brincadeiras, guisados, o rio Jaguaribe... o pulsar da vida. Do meu tempo de criança, em Saboeiro, o que mais me emociona são os amigos. Alguns distantes, outros ainda em contato, mas todos no coração. Como esquecer Dolores, Marta, Adailta, Dinorah, Vasco, Rita, Helânia, Ludogério, Audifrança, Liduína, Magda, Weldilene, Gotardo...? 


São tantos e tão queridos. Fazem-me querer ressuscitar a infância dos meus sonhos, aquela que existe dentro de mim como saudade. O encanto das pequenas felicidades perdidas, de alegrias já idas. Com cada um, momentos inesquecíveis, sonhos sonhados na pracinha Monsenhor Manuel Cândido, banho nos caldeirões, reisados, tertúlias, jogo de gamão debaixo do pé de castanhola, partidas de buraco na sala de jantar da Iolita, piqueniques, férias na fazenda Mamoeiro.


Não, não estou melancólica. Apenas recordando da menina pequena que era só olhos, boca e desejo pelos bolos de tia Águeda, o pirão de carneiro da vó Mundinha e as deliciosas sopas de dona Cristina. Como resistir a ova de “branquinha” cozida com pitada do amor da avó carinhosa.


A gente mandona lá de casa não tinha muita vez. Tentavam usar de pretensos direitos de educação, mas abusar, nem pensar. Quase ninguém conseguia governar minha vontade. Exceção para vó Mundinha. Bastava um olhar, que a teimosia acabava. 


Menina livre, eu era. Passava horas caçando rolinhas com os primos Dolores e Gotardo para depois comê-las cozidas. Éramos politicamente incorretos. Não saíamos impunes. O castigo cabia aos gansos da fazenda Mamoeiro, que nos impediam de sair da casa grande, sob pena de ser por eles caçados. Daquelas aves, tínhamos medo. Acreditávamos, nós, serem elas as justiceiras das rolinhas. Ficávamos no alpendre, enquanto os gansos, nos terreiros, pastoreando as crianças.


A mais temerosa aventura foi vivida, no papel principal, por Vasco. Eu, Adailta e Liduina, coadjuvantes nessa história acompanhada por quase toda a cidade.  A culpada, uma pitomba. 


Entre uma partida e outra de gamão, ele chupava a fruta escorregadia. Dados ainda rolando e lá estamos nós gritando que ele perdera a partida. Na ânsia da defesa, Vasco tentou argumentar, mas foi impedido pela danada, que desceu goela a baixo. Ou melhor, ficou preso na garganta. 
Agonia, correria. Cidade sem médico, o jeito era levar o menino magricela para as vizinhas Jucás ou Iguatu. O receio era saber se resistiria tanto tempo. 


Velhas ranzinzas avisavam que não chegaria a oito quilômetros de distância. Faltaria o fôlego e morreria. Outros, mais experimentadas, garantiam que em meia hora estaria de pés juntos. E, por ai vai. Muitas previsões.


Aboletado na cabine da caminhonete do tio, Vasco pensava como desbancar os “sábios” da cidade. Quanto a nós, reza e promessas por sua sobrevivência. A consciência nos cobrava responsabilidade. Horas depois, notícia chega de Iguatu. Vasco derrotara a pitomba. A experiência nos serviu de lição. Nunca mais misturar prazer com diversão, ou seja, pitomba com gamão.

sábado, 22 de outubro de 2011

Palavra: som do coração

Ouvi, dias atrás, que o olhar diz mais que mil palavras. Pode até ser. Mas sou do mundo das palavras, amo-as... uno-me a elas, embora muitas vezes me atrapalhe no dizer. Desde criança, vivo a palavra. Acredito que nos leva a verdade mais profunda existente no ser humano.

Detesto a obscuridade do silêncio. Ele me desespera, exaspera. Ler as entrelinhas é uma angústia. Para os mais espiritualizados, adivinhar o que o outro pensa e sente, é transcender a materialidade. Para mim, uma viagem maluca, que quase sempre nos leva ao labirinto das trilhas e ao abismo da incerteza.

Persigo as palavras, especialmente as que teimam não ser ditas e, avidamente, espero. Deixo-me por elas ser enfeitiçada, assumindo o risco da sedução e ser enganada pelo óbvio. Não faz mal. 


A palavra, no entender de Clarisse Lispector, materializa o espírito. Creio eu, ser o som do coração. Saudade, alegrias, esperança, tristeza, sonhos, amor...vida.

Mordo-as, espero, acredito. Neruda ensina que tudo está na palavra. Diz ele que "uma ideia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu". A incompreensão do dizer, penso eu, é melhor que o silêncio, que impede o mudar, sentir, experimentar, viver.

Embora devore a palavra, muitas vezes calo-me. A angústia vem e tento gritar, ouvir o som voz. Quero a palavra secreta, falada em sussurro, desejada. 

sábado, 15 de outubro de 2011

Escolha ou renúncia?

Não sei se as pessoas nascem com o destino traçado ou ele vai sendo construído através de ações concretas, no caminhar firme, com marchas e contramarchas, avanços e retrocessos. Ultimamente me pego meditando sobre os enigmas da vida, carma, encontros, desencontros, sofrer, amar, felicidade, tristeza, esperar. E a responsável por essa reflexão é Welba, amiga que trago no coração desde a infância. Sua história se assemelha a uma fábula, de tão difícil compreensão. No entender da jovem senhora seu viver é sempre acompanhado pela renúncia. Penso eu que a palavra certa é escolha.

Desde muito jovem, fugiu ela do agir de acordo com figurino da cabeça, de analisar e explicar a vida antes de vivê-la. Preferiu ouvir o coração e se entregar apaixonadamente. O preço, abandonar o projeto de mestrado na Itália pelo casamento com o rapaz vibrante que conhecera um mês atrás. Nunca mais falou em estudo, muito embora acredito não ter esquecido o sonho das descobertas, do questionar e descortinar que a Academia proporciona.

Welba é assim. As decisões, toma sozinha. Espera um ou outro sinal, o coração falar e, pronto. Escolha feita. Não mais olha para trás. Assim fez quando abriu mão de um tórrido romance em nome da família. Conta a minha amiga que renunciar (lá vem à danada se intrometendo na história) esse amor foi como abrir mão do prazer de viver. Mas, os filhos se tornaram prioridade com a possibilidade de perdê-los, após ameaças do marido, que, de compreensivo, tornou-se rancoroso. 

Talvez a traição tenha mudado o  modo de ser e pensar daquele homem. Ou o tenha instigado a cometer adultério, apaixonar-se por outra, abandonar a casa, filhos, esquecer as promessas de amor eterno, fidelidade.

Semelhante ao poeta, minha amiga levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima. Em pouco tempo, novos desafios, escolhas. Quase todas difíceis. Há poucos dias, abriu mão da possibilidade de emprego em país de primeiro mundo, salário alto, crescimento profissional. Para os amigos, loucura renunciar oportunidade única, desejada, idealizada por muitos. Não aceitam que Welba tenha ouvido somente o coração. Neste caso, dizem, a razão deve prevalecer. 

Feito menina que troca a boneca importada pela aventura da caça aos passarinhos no sertão, acredito eu ter minha amiga se embrenhado no mundo do amor, do pulsar. Estaria ela esperando o final feliz ou apenas cuidando do passarinho com asas? Incógnita é minha amiga. Poucos conseguem alcançá-la, descortiná-la. Feito atriz de teatro, está sempre representando e tendo a vida como palco. Tem se especializado em papéis alegres. 

Curiosa, estou cada vez mais próxima de Welba. Acompanho bem de pertinho seus passos, lutas, decisões e renúncias. Semelhante a um adivinho tento prever o final da história. Coisa difícil. Para complicar esse jogo da vida, não sei se o destino vem traçado ou construímos, cada um de nós, o próprio ‘scritp’.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Ele e elas!

Vinicius de Moraes ensina que “para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor”. No pensar e viver do comerciante Renato, a fidelidade não é amor. Para ele, amor é compartilhar. De preferência com muitas mulheres, ou pelo menos com três.
Infiel por natureza, vive maritalmente com Rosane, a irmã dela, Regiane, e uma prima das duas, Selma. As três aceitam o amor dividido do homem feio, deselegante e sem graça. Elas fogem ao ideal estereotipado do amor romântico ainda sonhado por jovens em pleno século XXI, ou da pregação das intelectualizadas que asseguram serem os homens inteligentes mais propensos a valorizar a exclusividade sexual do que homens menos inteligentes.
Neste caso específico, Renato prefere ser burro, mas dividindo, ou somando, a cama e mesa com as amadas. E nem se dá ao trabalho de responder as mexeriqueiras de Saboeiro, que ficam a bisbilhotar a vida da família e especular sobre as noites quentes de verão na casa de oito cômodos.
As mulheres também parecem não se incomodar. Amigas, educam os filhos para aceitar a situação. Cada uma tem dois, para evitar desavenças. O importante é a paz familiar. Nas manhãs de feira, caminham com passos leves para o mercado. De mãos dadas, sorrisos de cumplicidade, escolhem o melhor para o marido e as crias. Vivem juntas, se dão bem, vão à luta e conhecem a dor. Como no dizer de Lulu Santos, consideram justa toda forma de amor.
Nas festas, Renato reserva para cada uma três danças. Assim, todas saem satisfeitas. Viagens, com a família. O problema é o transporte. Não dá todo mundo em um carro. Só de ônibus ou avião. Nas últimas férias escolares das crianças - a mais velha tem dez anos e o caçula, dois – arribaram para Juazeiro do Norte em uma caminhonete.
Aperto, calor, sufoco, irritação. Discussão à vista e o comerciante foi logo arranjando uma solução. No meio do caminho, alugou um carro pequeno para transportar as esposas. Ele e os filhos viajaram na caminhonete.
Na terra de padre Cícero, comprou passagem de avião para São Paulo. Um mês na cidade grande. As mulheres embarcaram nas poltronas ao lado dos filhos. O comerciante, lá atrás sozinho, pastoreando os seus. Na capital paulista, conta uma das filhas, foi muito ruim. As mães exigiam a atenção do homem, queriam passear no mesmo carro, os mesmos presentes. O negócio era voltar logo para o conforto do lar, a paz de casa. Retorno antecipado em 15 dias.
Muito conversê sobre o passeio. Uma ou outra reclamação que Renato resolve logo com um olhar severo. As mulheres baixam os olhos e saem para cuidar dos afazeres domésticos e dos cuidados com os filhos. E vão vivendo o manto negro da submissão, sem darem um jeito nessa torta condição.

domingo, 2 de outubro de 2011

Esquecidos na dor

Rixas políticas, disputas por terras e gado, honra da família na ponta da navalha. As desavenças resolvidas sempre na bala ou faca. Quase sempre nas tardes de sábado, com a feira chegando ao fim. Os moradores já acostumados. Estranho era quando não ocorriam prisões, brigas nos bares estendendo-se pelas ladeiras, homens esfaqueados agonizando nas calçadas, mulheres correndo no socorro aos maridos e filhos, crianças chorando. Saboeiro lembrava a terra de ninguém, de homens que viviam para nada e por nada matavam e morriam.

As festas, seja da padroeira ou de conclusão do colegial, eram sempre um acontecimento. Muito mais por seu final.  A animação ficava por conta das bandas de música contratadas nas cidades paraibanas de Sousa e Patos ou em Recife. Mas, animação mesmo era o seu epílogo. Sem novidades. Tiros para o alto no meio do salão do Mercado Público. Correria. Artistas, desesperados, tentam se safar escondendo-se atrás das caixas de som. Homens e mulheres, esquecidos das lições de civilidade, disputam os dois portões de ferro fundido para chegar à rua principal e ao abrigo seguro.

As garotas abandonam os namorados em troca das colunas do prédio antigo do início do século XX, que resistiu as balas, mas não a ação de uma prefeita que o derrubou para construir um edifício nunca concluído. Mas essa é outra história. Voltemos ao cangaço em Saboeiro. Dias de conversê e especulações sobre o responsável pelo tiroteio. A cada festa, sempre o mesmo final. Mudava, vez ou outra, o seu autor.

No baú das muitas lembranças, carrego dois fatos que marcaram minha infância e me acompanham, semelhante a Josef de Franz Kafka, que acorda certa manhã e, sem motivos conhecidos, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por um crime não revelado. Lá pelos anos 70, a cidade acorda com a notícia de que um arremediado comerciante havia sido assassinato. Desvario. A polícia chega da vizinha Iguatu.Outro batalhão vai de Campos Sales. Prisões, ameaças. O autor do crime corre a boca miúda, mas ninguém com coragem suficiente para denunciar.

Em menos de dois anos, pai e filho são mortos em emboscada, no intervalo de oito meses. Dizem que por vingança.  Crimes de pistolagem que abalaram minha família. Tio e primo de meu pai, muito queridos. Choro, medos, novas ameaças. Lista com nomes das próximas vítimas corre de mão em mão. Especulações. Reza, muita, mas muita reza. Promessas aos pés de Nossa Senhora da Purificação. Pedidos para que a matança pare por ali. Proteção para os maridos, filhos, netos e sobrinhos. Os mais sensíveis recorrem aos calmantes prescritos por médicos apavorados. Famílias inteiras arribando para outras paragens.

Saboeiro precisou de décadas para se recuperar. Ninguém punido ou processado, diferentemente de Românovitch Raskólnikov, que se viu perseguido por sua incapacidade de continuar sua vida após o delito. O crime e castigo de Fiódor Dostoiévski não se coadunam com o cangaço experimentado na cidade de barões e viscondes, escravos e revolucionários esquecidos nos mármores do cemitério municipal, de sertanejos que viveram e travam diária luta pela sobrevivência. 

domingo, 25 de setembro de 2011

Premonição ou coincidência?

A família de minha mãe é muito religiosa. A devoção aos santos e o cumprimento os ritos da Igreja Católica são passados de geração a geração. Quando criança, ficava horas observando a bisavó Flora rezando. Mulher miúda, olhos azuis e serenos, vestido longo e negro, como exigia a uma viúva, cabelos em coque na altura da nuca, estava sempre acompanhada por um rosário. Todos as manhãs, lá estava ela sentada em sua cadeira de lona debulhando o terço.

Bivó Flora não perdia uma sexta-feira. Guardava aquele dia em respeito ao sofrimento e morte de Jesus. Não comia carne vermelha, nada de banho, e obrigação de assistir a missa. Antes de se mudar para Saboeiro, onde foi morar com minha avó Mundinha, ela percorria cinco léguas a cavalo da fazenda Belém até a cidade para acompanhar a liturgia na Igreja de Nossa Senhora da Purificação. Já com seus 90 e poucos anos, era levada pelos filhos, que respeitavam sua devoção as sextas-feiras. Na Semana Santa, jejum e orações.

Mulher especial ensinou aos filhos benevolência, humildade e respeito à natureza. Minha avó seguiu seus passos. Devota de Sant’Ana, todas as noites tirava o terço e cuidava do altar de padroeira de Saboeiro, na Igreja Matriz.O uso das ervas para curar doenças mais a aproximava de sua mãe, além da arte de bordar.

Vó Mundinha não era de acreditar em adivinhações. Ela dizia que o futuro a Deus pertence e cabe somente a Ele saber o que vai acontecer. Pode até ser, mas a clarividência chegou a sua vida sem que ela entendesse. Já mãe de cinco crianças vivas, a mais velha morrera com dois anos de idade, vó Mundinha engravidara do sétimo filho aos 36 anos, sete anos após o nascimento da caçula. Os dois últimos partos haviam sido complicados e ela quase morrera, especialmente no de minha mãe. Foram horas de agonia e dias de incertezas.

Temendo pela saúde da esposa, vô Manoelito a trouxe a Fortaleza para ser avaliada por uma equipe de médicos. O ano era 1945. Minha avó foi levada a uma médica armênia, muito conhecida na Capital por sua atuação na área de obstetrícia e ginecologia. Horas de conversa, exames, medos e incertezas por parte do casal, que se fazia acompanhar por uma irmã de meu avô. Alívio. A médica garantiu que o feto estava se desenvolvendo e que a futura mãe estava muito bem.

Antes de o casal sair do consultório, a armênia olhou para vó Mundinha e disse com voz mansa, porém segura:

- A senhora vai ter um menino, que muito vai amá-la. Essa criança se tornará homem, será o seu grande conforto na velhice. A senhora vai morrer em seus braços.

Pouco falava ela sobre o encontro com a médica armênia. Talvez por não querer mudar suas convicções, mas o fato é que o menino temporão tornou-se médico e participava ativamente da vida da mãe. Conforto não faltou àquela senhora encantadora, firme e meiga. Por quase 20 anos lutou contra a angina e problemas pulmonares.

Aos 89 anos, 54 anos após aquela premonição, nos braços do tão amado filho, despediu-se dessa vida e retornou a pátria espiritual.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Noites sem cor

Noites sem lua me assustavam. A imaginação me levava a crer que as assombrações, à espreita, aguardavam para atacar. Parecia eu uma vivente medrosa. Muitos padres nossos e ave marias debulhados debaixo do lençol para espantar os fantasmas que teimavam em amedrontar o sono em pesadelos de assassinatos, brigas, vidas inexplicadas. À mãe, cabia velar o sono com histórias de cinderelas, gato de botas, reinos encantados.


Ainda menina pequena, tentei fugir da escuridão e enfrentar esse perigo contagioso. Madrugada adentro, a casa se iluminava com a chama da lamparina. O problema é quando precisava passar a noite sem cor na casa de amigos, parentes. Era uma dor. Carregava na bagagem o medo, vergonha e algumas velas para alumiar a imaginação. Encabulada, ensaiava a falação sobre dormir no claro. Buscava Manuel António Pina para justificar a situação constrangedora. “Seria capaz de não ter medo de nada, nem de algumas palavras juntas?”


De todas as muitas, alegres e difíceis situações vividas na infância e adolescência, a mais constrangedora que a imaginação me permite encontrar no baú das lembranças foi uma noite de festas em Aiuaba. Cidade lá do sertão dos Inhamuns que acolheu meus pais como uma mãe adotiva que escolhe a criança para amá-la por toda a sua existência.


Ainda se achegando à cidade, meu pai construiu um pequeno apartamento para seu conforto e de minha mãe. Nas visitas que fazíamos, eu e meus irmãos, sempre acompanhados dos primos e primas, éramos arranchados nas casas dos amigos.


Em um dezembro da década de 1980, o forró corria solto no salão paroquial. Dança, conversas soltas, paqueras. Lá pelas 2 da madrugada, o cansaço toma conta do corpo. Hora de dormir. Eu e minha prima Adailta fomos para a residência de um casal amigo de meu pai. Armamos as redes no quarto. Pouca intimidade tínhamos com os anfitriões. Primeira vez de hospedagem na casa. A luz acessa na sala de visitas dava-me o conforto do sono sem sobressalto. Doce ilusão.


Foi só fechar os olhos e... pronto. Energia acaba. Maldita usina de Paulo Afonso. Vez ou outra, o gerador pifa e a eletricidade vai embora. Desespero. Num só pulo, estou ao lado da salvadora bolsa de bagagens. Amedrontada, tateio a procura da vela. Alívio. Lá está o maço encostadinho da caixa de fósforos. No desespero, acendo duas de uma vez só. Para garantir que o quarto continue alumiado até o dia raiar.


Satisfeita, deito-me. É quando Adialta, que acompanha a arrumação, acaba com a festa.


- Pra que as duas velas?”, dispara


- Ora, para quando uma acabar, a outra continuar iluminando”, responde no alto de minha sabedoria


- Avisa a uma delas para continuar acessa, já que elas foram acessas juntas, devem apagar juntas”, brincou Adailta e foi logo se enrolando e dormindo.


Pra que aquela observação? , pensei eu, que fiquei o resto da madrugada vigiando as chamas das velas.


O medo do escuro da noite só foi embora após anos de análise. Não sei como chegou e nem como partiu. Simplesmente, sumiu.

domingo, 11 de setembro de 2011

Histórias de Trancoso?


Em Saboeiro, coisas aconteciam que mais parecem histórias de Trancoso, como diria minha mãe. Numa terra tostada de sol e tintas de sangue, de homens e mulheres castigados, de pessoas mais duras que as pedras dos seus lajedos, estes fatos se transformaram em lendas, folclore. Tudo o que vi na minha infância e senti se refugia no fundo da sensibilidade, permitindo, no dizer de José Lins do Rego, “que a narrativa corra, como em leito de rio que a estiagem secara, mas que as águas novas encham, outra vez, de correntezas”.


Histórias de almas penadas, botijas, de amores proibidos, brigas de famílias, de homens embrutecidos, davam-me a sensação de espanto, fuga à realidade. As que mais excitavam a minha imaginação eram as contadas por meu tio Valdizar, que não se cansava de me relatar casos de catalepsia. 


Contava meu tio que a Serra do Flamengo, localidade afastada da cidade e de difícil acesso àquela época, viveu a dualidade dos sentimentos: dor, saudade, medo e fatos hilários. Atraso e crendices alimentavam seus moradores. Manhã de uma sexta-feira na década de 1950 chega a notícia da morte de uma mulher de 70 anos, aparentemente sem doença. Teria sido uma ataque cardíaco fulminante. 


A parentada e amigos correm para velar o corpo. O caixão no centro da sala de visita da casa, de porta e janela. As mulheres rezam, fazem coro. Os homens, conversam no terreiro, contam causos à espera do tempo. 


Choro e ladainhas cortam a noite. O breu toma conta do lugar. A luminosidade somente pelas lamparinas. Lá pelas 11 horas da noite, um dos mais chegados da família se aproxima do caixão e percebe algo estranho. Chama o filho da mulher e dispara:


- Cumpadre, dona Raimundinha está se mexendo


- Que é isso, amigo. Minha mãe está mortinha”, responde o sofrido filho.


Experimentado pela vida, o homem se afasta intrigado. Minutos depois, alvoroço. A mulher se levanta de repente e senta no caixão. Desvario. Homens, mulheres, crianças e velhos vivenciam o que diz o ditado popular: “cada um por si e Deus por todos”. Desatino. Gente pulando a janela da casa, terços perdidos na correria, mulheres se atropelando com crianças, velhos tentando alcançar os roçados. 


A mulher fica sozinha. Ninguém para libertá-la dos crisântemos que enfeitavam o seu corpo inerte no caixão. Somente com o dia claro é que a parentada se aproxima da casa para tomar ciência do que acontecera. Depois do susto, alegria por ter a matriarca de volta.


Casos jocosos não são prioridades do povo simples do sertão. Recentemente, assisti, em Fortaleza, a um fato que se não trágico seria engraçado. Um homem fora apresentado a um defunto durante o velório.  


Um filho dolorido com a morte do pai, recebia os cumprimentos dos amigos horas antes do sepultamento. Ao receber o abraço de um amigo, o levou para perto do caixão e foi logo dizendo, pesarosa: 


- Paizinho, esse é o fulano de tal, que tanto o senhor queria conhecer”.

O jovem levanta o véu que cobria o rosto e mãos do morto para que o amigo saudasse o seu querido pai. O pobre rapaz, pálido de surpresa e medo, recuou, sem saber o que dizer.

Em pensamento, sugeri eu ao amigo que deixasse as formalidades do momento e falasse do prazer em conhecê-lo. Poderia até travar um monólogo amigável, relatando casos vividos com o filho do homem. Seria agradável a família enlutada.



terça-feira, 6 de setembro de 2011

Amor à Pátria!

Alvorada festiva anuncia o dia especial. A cidade acorda cedo. Burburinho de crianças correndo ladeira acima em direção ao Grupo Escolar Olavo Oliveira. As mães, socorrendo os mais atrasados, preparando o café da manhã reforçado. Os homens formam rodas de conversa nas praças. É um vai-e-vem de carros, cavalos, algumas poucas motos. As professoras carregam, orgulhosamente, as fantasias ricamente produzidas pelas costureiras da cidade.

Lá em casa, também levantamos cedo. Ao contrário do restante da população, não estou nem um pouco entusiasmada e o banho com água gelada para despertar só piora o mal humor. E a roupa quente de brim azul escuro, sandália frouxa no pé miúdo, são prenúncio de que aquele será um dia difícil. Para minha irmã, a glória. Ela será dona Leopoldina, a Imperatriz do Brasil.

No entender de meu irmão, mais um momento de farra. Depois de meses de ensaio, vai tocar clarinete por mais de três horas seguidas. Coitado, não sabe o que o espera. Aliás, ninguém em Saboeiro poderia prever uma festa cívica tão bonita. O povo inteiro se aglomera nas proximidades do grupo escolar, acompanhando o perfilamento dos alunos. Os mais altos na frente. Os baixinhos atrás.

Naquele 7 de Setembro, desfilei no pelotão das Bandeirantes, numa referência aos sertanistas de São Paulo que penetraram os sertões brasileiros em busca de riqueza mineral. Ficava eu à frente do grupo ao lado Dolores. Acho que fomos escolhidas por ser eu sobrinha e ela enteada da diretora.

Sol alto, calor infernal anunciam que já passa a hora do desfile. O toque dos tambores anuncia o início da marcha. Lá vamos nós ladeira acima, ladeira abaixo batendo os pés no mesmo sonambúlico compasso. Suor pingando, pés maltratados pelas pedras portuguesas, sede, muita sede. Nada de olhar para os lados. As professoras, sob orientação da diretora, vigiavam a todos. Era o quartel ao ar livre, sob a complacência dos pais orgulhosos com os filhos sofridos e doloridos.

Vale tudo pela pátria. Não, não nego o meu patriotismo, respeito e amor ao Brasil. Mas aquilo era tortura. Saboeiro, cidade perdida no sertão cearense, não seria cobrada pelos militares se poupasse o futuro da Nação. Uma, duas, três horas de marcha e ainda fazendo coreografias. Não escaparam nem mesmo as ruelas. O pior foi subir a ladeira do pecado. Íngreme e cheia de buracos, maltratava até os mais fortes e calejados pés. Já não agüentava mais. No alto dos sete anos, meus pensamentos viajavam para longe. Como me libertar daquela situação sem castigos.

Chegamos à praça Monsenhor Manoel Cândido. Ponto alto da festa. Dom Pedro I, barba e costeletas pintadas com carvão, surge imponente em seu alazão vestindo uma capa dourada. Mais um mentira da história reproduzida durante anos pelas escolas Brasil afora. Naquela tarde de 7 de Setembro de 1822, o futuro Imperador parou às margens do riacho Ipiranga para aliviar a dor de barriga. Ao ler as cartas de sua esposa e futura imperatriz Leopoldina e de José Bonifácio, sobe em seu pangaré e declara a independência do País.

Voltemos a Saboeiro. Na rua Visconde do Icó, olhando para o rio Jaguaribe, surge o nosso imperador. Expectativas. O estudante de 15 anos empunha a espada e grita “independência ou morte”. É o grito de liberdade. A liberdade de crianças estropiadas da marcha cívica. Saio em disparada e sou acompanhada pelo pelotão das Bandeirantes e de boa parte dos alunos, que acreditam ter acabado o desfile. 

Foi um Deus nos acuda. Em casa, reprimendas, castigo. No Grupo Escolar, repreensões, censura. Não me arrependo de ter me rebelado, na inocência de criança, contra a repressão de adultos a quem admirava e continuo respeitando e amado. Ainda hoje, não gosto e não costumo acompanhar o desfile de 7 de setembro.

Um poema de Olavo Bilac

A PÁTRIA
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha…
Quem com seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o sue esforço, e é feliz, e enriquece!
Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!



segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Grande família!


Vô Manoelito e vó Mundinha nas Bodas de Ouro

Minha família adora se reunir, estar sempre junta. Tudo é motivo para encontros. Nas datas comemorativas, dia das Mães, Natal, aniversários, Semana Santa, carnaval, batizados, casamentos, separações, desencontros. Lá estamos nós, unidos, discutindo, falando alto, brigando, chorando, rindo, fazendo algazarras. Parecemos nós a inspiração para Dudu Nobre. “Esta família é muito unida e também muito ouriçada. Brigam por qualquer razão, mas acabam pedindo perdão...”


Alguns festeiros, outros recatados, mas presentes. Meu pai era o mais animado de todos. Inventava de um tudo para reunir amigos e parentes. Churrasco, forró, banhos no açude, almoço que se estendia até o jantar e, para alguns, o café da manhã. Dançava ele o dia inteiro entre um gole e outro daquela cervejinha gelada. Minha mãe o acompanhava nos passes de xote, na atenção aos convidados.


Para meu pai, festa boa só com muita gente, a casa cheia. Felicidade para ele eram os filhos, netos, genros, nora, irmãos, cunhados, sobrinhos, parentes e aderentes reunidos. Com a sua partida para a pátria espiritual, coube a um primo-irmão assumir a tarefa para o ajuntamento familiar.


Mas, o melhor da festa é na casa de meus avós Manoelito e Mundinha. Tudo é motivo de desculpas para arribarmos até Saboeiro. Uns vão de Fortaleza, outros de João Pessoa, Recife, Altino, Crato. O importante é chegar a tempo para os quatro dias de Semana Santa. Tiram-se alguns minutos para reza e o restante é cadeiras na calçada, conversas, discussões, risos, brincadeiras, matar a saudade. 


Cabe a filha mais velha do casal receber os hóspedes, entre 50 e 70 pessoas. A parentada  se delicia com a melhor bacalhoada da região, o manjar dos deuses, o pão de forno, o cajá-umbu, milho assado na brasa, a canjica. Ah, e não vale esquecer o doce de leite, de banana, de mamão, a galinha à cabidela. Ninguém perdoa. Todos querem as iguarias. São dias de comilança, acompanhada de vinho.


Na casa de meus avós, a bebida dos deuses nunca falta. Foi lá que aprendi a degustar o vinho. Ainda na minha infância e adolescência, vó Mundinha preparava para os netos, o que chamava de suco de uva. Mistura de vinho, água e açúcar. 


De todas as festas, a que mais me emociona são as Bodas de Ouro de meus avós. Tinha eu 14 anos e guardo na lembrança cada momento da renovação do amor vivido por 50 anos. Na cerimônia religiosa na Igreja Matriz de Saboeiro, os dois trocavam olhares de cumplicidade e promessas de novos sonhos. 


Pareciam eles dizer um para outro que já choraram, sofreram, mas acreditaram. E essa fé os levou ao altar de Nossa Senhora da Purificação para declarar que vão se amar enquanto houver vida entre eles.


E se amaram. Dez anos depois, estavam eles comemorando Bodas de Diamantes. E novamente renovando o ouvir o coração chamando pelo outro. Promessas de amarem-se na alegria e na dor. Entre eles não havia mistérios.

domingo, 28 de agosto de 2011

Tempos felizes



A mais encantadora calçada do mundo. Da casa de meus avós Manoelito e Mundinha
 
 Ainda hoje, em Saboeiro, o tempo teima em não querer passar. A televisão, internet, as motos gritando ladeira acima, ladeira abaixo, não conseguem competir com o marasmo da cidade. As pessoas continuam se esgueirando pelas esquinas, tentando se esconder do sol escaldante ou seria da própria vida? Dos tempos de minha infância, pouco mudou na rotina de sua gente. Os mais velhos teimam em manter o costume.

Enquanto o sol se põe no horizonte, mulheres e homens iniciam o ritual diário das cadeiras nas calçadas para acompanhar o vai e vem de crianças, adolescentes, das fofocas das comadres.  O jantar pontualmente às 17h30 para aproveitar, ao máximo, o presente divino da lua cheia, minguante, crescente, nova. Do céu estrelado anunciando a vida. Embalar-se no “ventinho de Aracati”. Da “boa noite” no sobe e desce de fiéis para a missa das 19 horas.

No entanto, do tempo de minha infância perdeu-se a inocência, as noites na pracinha Monsenhor Manoel Cândido, as tertulhas no Mercado Público, as serenatas na soleira das janelas, as paqueras entre um mergulho e outro nas águas do rio Jaguaribe, nas brincadeiras na loja da Socorro, dos guisados, piqueniques.   

Trocaram o rádio, orgulhosamente instalado na parte mais nobre da casa, pelo aparelho de TV. Abandonaram os cavalos como principal meio de transporte. Hoje, as meninas moças tentam imitar o estilo de vida de Xuxa, Angélica, Eliana, Ana Hickmann, Adriana Galisteu, Luciana Gimenez. Imitam suas roupas, trejeitos, gostos e equívocos. Seria o progresso chegando? Qual nada. É o lado negativo da globalização, que levou à pacata cidade a droga, prostituição.

Saudosista, prefiro a terra de minha infância e adolescência. Sábado era sempre um alvoroço. A cidade acordava cedo com o som dos carros que chegavam de outras paragens para a feira. Anunciavam o feijão verde colhido dias atrás, as melhores frutas e verduras vindas diretamente do Cariri. As alvejadas redes de tear feitas por mãos calejadas de mulheres e homens da cidade pernambucana de Caruaru eram anunciadas como as mais fortes do mundo.

Era uma gritaria só. A poluição sonora transformava a calmaria da cidade em uma grande farra. E para lá corriam meninos, adultos, velhos. As mulheres escolhendo os melhores produtos, enquanto os maridos faziam os negócios. As crianças apreciavam as guloseimas vendidas nas bancas montadas nas ruas do mercado, e os adolescentes aproveitam para as paqueras, intrigas, travar novas amizades. Fim da manhã, o grupo de jovens se reunia na lanchonete para conversar, beber, namorar. Estava eu sempre ao lado de minha irmã e algumas primas contando piadas, causos.

Saudades daquele tempo que volta sempre nos reencontros com os primos e amigos de infância. No almoço do último domingo, 21, quando nos reunimos com os irmãos de minha mãe e seus filhos, vivemos novamente a adolescência em Saboeiro nas lembranças das histórias ali passadas. Cada um de nós, puxando um fato e outro. Alegria de reviver tempos felizes.

Beth: vida intensa!

Ao ouvir Reynaldo Gianecchini falar sobre a quimioterapia como “tratamentinho” fiz uma viagem ao passado. Revi a querida amiga Beth, que por quase dez anos lutou contra o câncer. Na mama, nos ossos, no pulmão e rim. Foi derrotada pela doença e há cinco anos partiu para a pátria espiritual. Mas, ao contrário do que se pensa, foi vencedora, guerreira. Venceu o medo, desespero, a revolta.

Agarrou-se à vida, viveu intensamente as horas, minutos, segundos. Teve as pessoas ao seu lado por puro prazer da alegria e de fazê-las feliz. Tenho um orgulho danado da minha amiga. Nunca se maldisse ou fez queixumes da situação. Acredito que buscava forças no amor a única filha adolescente e ao marido, a quem devotava todos os momentos de seu tempo.

Serena, estava sempre sorrindo, prestativa. Nem os momentos mais difíceis, as dores, diagnósticos, tratamento, o cateter, as agruras a impediam de fazer planos. Parecia ela viver o tempo de Mário Quintana. "Se me fosse dada um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas".

Recordações felizes daquela mulher bonita, alta, pernas bem torneadas, olhos verdes, sorriso encantador. A dignidade com que encarava a doença me impressionava, instigava. Quase todos os finais de semana estávamos juntas. Sempre em festa, muito dificilmente no sofrimento. Porque Beth era alegria, parecia ela rir dos problemas, lutava pela saúde, abandonou o medo muito cedo.

Viveu os momentos, sentiu o prazer e a dor do viver. No sítio em Cascavel, nas descobertas de novos restaurantes nas noites de sábado, sol e mar na barraca Arpão, sua preferida, ou nas reuniões madrugada à dentro lá em casa, brindadas com vinho. Conversas sobre família, maridos, filhos, roupas, trabalho, planos, muitos planos fizemos juntas. Quase nunca se falou sobre a doença.

Parecíamos ter feito um pacto silencioso. O câncer só entrava em nossos encontros quando abdicávamos da taça de vinho (quando ela era impedida de sorver a bebida dos deuses por determinação médica, e eu me sentia também proibida. Passávamos a noite a pão e água) ou quando minha amiga não suportava ficar muito tempo sentada. Lá estávamos nós andando entre as mesas da pizzaria, restaurante, como que vigiando os clientes.

Beth vivia intensamente a filha adolescente, recém ingressa na universidade.  Sofria a sua dor, ria a sua alegria, sonhava os seus sonhos. Feito duas meninas, iam juntas ao salão de beleza, às compras, à praia. Conversavam. Pareciam elas duas em uma. Com o marido, sempre atenta para servi-lo. A comida que ele gostava, preparava sua roupa em cima da cama, buscava a toalha, a sandália. Ajudava nos preparativos dos aperitivos, levava a cerveja para que não precisasse sair da piscina. Sempre sorrindo, alegre.

Assim era minha amiga. Sempre presente. Talvez por estar próxima,servindo, esqueci eu de lembrar a essa criatura maravilhosa que é proibido deixar os amigos.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Bonequinha de pano!


Era uma vez um jovem casal com um filho que muito desejava uma menina. Os pedidos tornaram-se alegria, vida. Em uma ensolarada manhã de sábado de 1993 chegava aos braços da mãe a irrequieta criança. Gorducha, olhos suaves, choro forte, cabelos pretos. Parecia ela uma das bonequinhas de pano criadas pelas delicadas mãos de minha avó Mundinha, que encheu minha infância de fantasias.

Filha de minha vida, fruto de meu corpo, libertou-me de uma vida mesquinha, que eu tinha e dizia ser só minha. No primeiro encontro, a menina reforçou o meu destino mais precioso e criativo, o de ser mãe. Minha liberdade, que eu pensava perdida, ganhou novo nome: felicidade.

Do pai, ficou um pouco de tudo na criança, que hoje se faz moça. Um pouco de seu queixo ficou no queixo da filha. De seu sorriso, a certeza do caminhar. De seu áspero silêncio, um pouco ficou quando seus apelos não são atendidos. As explosões de sentimentos, zangas e esquecimentos das mágoas, também ficaram na menina alegre e criativa.

Com ela, a casa é sempre alvoroço. Festa, risos, reclamações, batidas de portas. Mariana não aceita tranqüilidade. Tudo é muito intenso. Estudo, balé, amizade, companheirismo. Exige sempre atenção, talvez por estar sempre à disposição dos que a cercam e dos que acaba de conhecer.

Nos passos de demi-pilé, pointe tendu, passé, sissine, pás debourrée, plié expressa a alegria do viver. Feito pássaro tímido, ensaia os primeiros voos sem medo, e a sonhar o sonho dos adultos. Seus braços se enchem na solidariedade, no sorriso das crianças carentes que assiste nas tardes de sábado. Mariana voa no afeto a avó Lúcia, na entrega aos dois irmãos, no carinho das primas, na cumplicidade com a mãe.

De temperamento forte e doce, aceita o papel de conselheira das amigas. Talvez explique a escolha por estudar a psicologia social e humana e desbravar os pensamentos de Sigmund Freud, Gustave Le Bom, Carl Gustav Jung ou Wihelm Reich. Tentaria ela decifrar o outro para se perceber melhor? Ou seria o sentimento de desprendimento e amor ao outro que sempre a motivou?

Mas não se enganem. Nada de imposição. Que o diga a babá Vanisa, sempre questionada em suas ordens. Muita pequena, já incentivava Victor, o irmão mais velho, tímido e obediente, a rebeldia contra a "tirana" babá.

-Ela não é nossa mãe. Não obedece a ela, não.

Disparava a rebelde no alto de seus seis anos quando ao irmão era imposto comer verduras e frutas indigestas para as crianças, fazer as tarefas escolares, guardar os brinquedos, e tantas outras determinações. Mas, a teimosia logo se dissipa com o afago no olhar. Mariana é vida, sonho, alegria. É a expressão de Deus em nossas vidas. É no nosso caminhar .

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Nos tempos da felicidade!

Eu era feliz, atrevida, valente. Aceitava as provocações que a meninice me impunha ou seria eu que desafiava a normalidade da casa? Infância de desafios, conquistas, brincadeiras. Miúda, pernas finas, traquina e irreverente, nunca chorava, sempre olhando os adultos nos olhos. Em resposta, ralhos e castigos.

Trabalho imenso dei à família para me torcer, retorcer, medir e desmedir. Descobri, fui descoberta, cai, levantei, cai de novo e, novamente de pé. Domada, só pelo escuro da noite. Acreditava eu no poder da luz para afastar os fantasmas que teimavam em me perseguir madrugada à dentro. Venci. Fui livre. Vivi em liberdade.

Minha infância em Saboeiro foi rica em experiências. No desejo inquieto que não passa, enfrentava um novo desafio, nova conquista com bom humor e otimismo. Nas aventuras, sempre a companhia da prima Adailta, hoje comadre. Semelhantes a Dom Quixote de La Mancha e Sancho Pança, lá estávamos nós no limite entre fantasia e realidade, desdenhando a caça, pela doida aventura da caçada. Saíamos de uma para outra com a mesma intensidade e rapidez que trocávamos de roupa. Na maioria das vezes, impunes.

Diferentemente da maioria das amigas, as brincadeiras de casinha, bonecas e dona de casa não nos atraia. Enfrentar as correntezas do rio Jaguaribe, andar quilômetros a pé para fazer guisados, aperrear as mais ingênuas, jogo de cartas, estes, sim, nos empolgavam. Não poderia ser diferente. Exigiam perspicácia, coragem, atrevimento. Era a volúpia de viver dia a dia, hora a hora.

Por dias, investimos o tempo para infernizar a vida de seu Fransquinho, vigia do Grupo Escolar Olavo Oliveira. O homem cumpria rigorosamente as ordens da diretora Zuleide, minha tia, que proibiu crianças nas janelas do prédio. Enquanto à tarde, lenta, caia, lá estávamos nós descumprindo a determinação, para desespero do pai de duas amigas. Saia ele com ameaças e xingamentos tentando nos amedrontar. Efeito contrário, instigava. Minutos de correria, gritos, gargalhadas e o pobre homem, desesperado e esgotado, desistia.

Satisfeitas e vitoriosas, procurávamos outra brincadeira. Aquela perdera a graça, não se estendia mais que alguns minutos. O negócio era investir em outra vítima. As preferidas, Maria Dolores e Dinorá. De vez em quando, Helânia e Marta viravam “pato” no jogo de buraco. Sempre em dupla, vencíamos, eu e Adailta, todas as partidas de baralho, graças às armações. Desespero e indignação entre as adversárias. Horas de reclamações, intriga, ofensas. Nada nos atingia.

Éramos a personificação da boneca Emília, criação de Monteiro Lobato. Valha-me Deus! Birrentas, rebeldes, queríamos diversão. Nada melhor que Dinorá, menina religiosa, cheia de manias e medrosa. A todo instante recorria a Nossa Senhora da Purificação para não cruzar com uma vaca, não se afogar, chegar a casa ilesa, não cair... e lá vai. Em troca, promessas de rezar um terço de joelhos, assistir não sei quantas missas, passar dias com roupas de cor tal.

O drama da coitada é que nos incluía no pagamento do prometido. Adailta saia logo avisando: “não vou pagar promessa nenhuma”. Desespero para Dinorá, que acreditava ser a proteção para toda a turma. A resposta vinha nos banhos nos Caldeirões. A atraíamos para a pedra mais distante das margens do rio Jaguaribe em um lugar fundo. Bastava ela chegar ao local, após vencer o medo de afogamento e várias braçadas, eu e Adailta mergulhávamos de volta ao raso e nos despedíamos. Era um tormento. Grito, choro e pedidos de socorro.

Com Maria Dolores, as pequenas maldades eram perdoadas sempre no fim da tarde, sempre com meu pedido de desculpas. A amizade era selada, todos os dias, com um prato de sopa, preparado por sua avó, minha referência de vitalidade. Mulher alta, magra, cabelos compridos preso em um coque na nuca, dona Cristina era força e beleza. Nas horas de folga, brincava com as cartas de baralho acompanhada por prazerosas baforadas de cigarro de fumo.

Saudades da criança e do tempo em que ninguém me dizia não ser capaz.

sábado, 6 de agosto de 2011

Viagem ao desconhecido

As bibliotecas têm muito mais que conhecimento. Além de abrigar a história da humanidade, têm histórias de pessoas anônimas que não viraram personagens de livros. A partir do momento em que temos contato com a vida desses desconhecidos, um novo mundo se descortina. 


Aconteceu comigo. Folheando um livro sobre a imprensa cearense no século XIX, na Biblioteca Público Menezes Pimentel, encontrei uma carta de amor, que guardo como relíquia. A história até hoje mexe com meus sentimentos, pois aguça a curiosidade de saber o que aconteceu com seus personagens, se a viagem foi realizada.

Por algum tempo tentei localizá-los, mas creio não ter tido a mesma persistência da romântica Sophie, em Cartas para Julieta, que ao encontrar a declaração de amor de Claire a Lorenzo, promoveu o encontro dos dois, 50 anos após a carta escrita. Talvez por não estar na cidade italiana de Verona, cenário de amor descrito por William Shakespeare em Romeu e Julieta.

A carta-declaração é um convite ao indecifrável e irracional mundo dos apaixonados, da arrogância de acreditar ser dona do sentir e da vulnerabilidade da paixão. “Um dia, desprevenida, a rainha de Sabá sucumbiu. Apaixonei-me por você. Confesso que lutei e relutei muito contra esse sentimento, mas a cada dia você fica mais forte dentro de mim. Não consigo dominar a vontade de vê-lo, de estar em seus braços, sentir os seus lábios, me perder em seus beijos”. declara a amante.  

Atormentada, descreve as noites em claro, a dor dilacerando o corpo, o pensamento longe, buscando o amado na lua, no céu, nos sonhos. “Só o encontro dentro de mim. Quero ardentemente me entregar, ser sua por inteira”. Em outro trecho, garante não ter sentimentos de culpa, medo de ser magoada ou magoar,  não ser frágil e nem forte, mas uma mulher apaixonada por um homem, em seu olhar, encantador, guerreiro, desafiador, vaidoso, otimista. Um homem que não é herói ou salvador, apenas homem, humano.

Mais adiante, faz declaração de amor e convite ao desconhecido e ardente viver da paixão, do somar, do construir. Não se assuste, diz ela, não é um pedindo de casamento, mas convite a uma viagem instigante e imprevisível. “Uma história de doação, alegria, tesão, sexo, descobertas e compromissos somente com os sentimentos. Sem nenhuma obrigação. Essa é a minha proposta, aceita?” 


A cada leitura da carta viajo na imaginação. Em um momento, penso eu que a carta foi guardada no livro pelo amado, no desejo de dividir com desconhecidos a sua história. Em outros, que a declaração de amor nunca chegou ao destinatário e que o moço até hoje vive na inocência da paixão da mulher apaixonada. Façamos, cada um de nós, o final dessa viagem.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Viver dói!

Fim de tarde. Burburinho que se transforma em algazarra. Repórteres em pauta, muitos outros produzindo textos. Editores montando informações. Planejamento, conversas, confirmação de dados. Redação agitada vai se transformando em quase caos na medida em que as horas passam e o fechamento da edição se aproxima. Em meio a esse maluco cenário, estão lá, três jornalistas, com diferentes idades e experiências, buscando entender os descaminhos e as provas que a vida lhe impôs.

Fogem ao vizinho restaurante para digerir suas dores, mágoas, angústias, incertezas, medos. Sentimentos solvidos entre um gole e outro de café com leite, refrigerante, queijo coalho, pamonha e pão de queixo. 
As três procurando respostas para as asperezas do caminho. A mãe, fortaleza da casa, preparando sua partida sem que se possa fazer em contrário; o amor não prometido que se recusa chegar, as doenças que teimam em desafiá-la, e por ai vai... É um rosário de lamentações.

Risos, olhos lacrimejando, perguntas sem respostas. Por alguns momentos, parecem encenar o monólogo de Hamlet, preferindo gemer e suar sob o peso de uma vida fatigante, vivendo o medo do que promete o futuro, talvez temendo voar para o desconhecido.

Buscavam elas o refúgio no dizer da outra, recusando o difícil viver. A calmaria aparente ameaçava explodir em lágrimas, indignação, rebeldia. Queriam elas transmutar a realidade do bem querer que se refugia no passado, assistindo o mundo se descolorir sem interrupção de seu curso.

Ah, essas mulheres jornalistas ou jornalistas mulheres, que vivem a paixão insaciável, no dizer de Gabriel Garcia Marques, reproduziam mais um drama de Nelson Rodrigues, no epílogo que a vida muito promete e tão pouco oferece.

Retornam à redação tentando escamotear o tempo dividido, querendo-o inteiro. Mas, concluem que esse tempo não existe e viver dói, contrariando Carlos Drummond de Andrade de que o sofrimento é opcional. “Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram”.
 

domingo, 31 de julho de 2011

Silêncio que respeita!

Saudades de um passado que ainda não passou. Permanece no coração que se enche e escorre pelos olhos. Saudade do riso fácil, do aconchego com o olhar miúdo, do aperto no braço, das passadas firmes, da voz mansa, do cheiro forte, do amor incondicional. Saudades do amante da vida.

Estaria eu recusando o presente que me machuca ou tentando absorver a sua lembrança para matar a fome da ausência? Busco nas fotografias antigas, nos vídeos, um pouco de mim e o encontro. Sete anos se passaram. Parece que foi hoje. A mesma dor, surpresa, a alma dilacerada, o coração destroçado. Manhã de sábado de 31 de julho de 2004, a casa levanta alvoroçada com o seu silêncio. Chamo e ele não responde. Partiu sem um adeus ou até logo. Teria ele se despedido na noite anterior ao me cravar um olhar sereno e amoroso?

Penso que ele preferiu assim. Ir-se como sempre viveu. Gritando em silêncio, amando sem alarde, doando-se sem esperar em troca. Era como menino, sentia como menino, vivia como menino. Devoto de Nossa Senhora de Fátima, vivenciava, o que São Paulo considerava a mais excelente das virtudes, a caridade, que se traduzia no desapego, respeito às diferenças, bondade, liberdade.

No dizer dos parentes e amigos, conciliador. Para mim, generoso com uma pitada de cumplicidade. Viveu igual ao dizer de Cora Coralina “colo que acolhe, abraço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que escorre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove”.

Incentivou o caminhar livre dos filhos, a escolha da profissão, os companheiros de jornada, a vida por eles traçada. Apoiou cada decisão, embora discordando de algumas. Sentia as suas dores, aflições, medos. Às crias, cabia a certeza do apoio, aconchego, solução.

Aos netos, sempre o sim. Nunca, o talvez ou o não. A eles, tudo era permitido. Capricho nos mimos e agrados, riso das pequenas transgressões, reforçando a crença de que avô deseduca. E não adiantavam os pais ou mães virem com proibições, cobranças, broncas. Em sua casa, os pequenos reinavam. Os três mais velhos – Pedro, Lucas e Victor – comandavam as mais terríveis brincadeiras como cercar as árvores frutíferas da avó Lúcia com pólvora e depois atear fogo. No máximo, correia. Castigo, abolido na família por decreto de seu Chico.

O avô passava horas ouvindo a doce e meiga Gabriela contar sobre a escola, bonecas. Com Hannah Kelly, compra de guloseimas. Para Mariana, a quem não se cansava de elogiar a beleza, reservava horas prazerosas com os desenhos animados. O preferido, pica-pau. Yasmynhe, orgulho da inteligência e emoção com as cartinhas por ela escrita. Aos caçulas Mateus e Tiago, jogo de futebol. A cada drible ou gol, gritaria dos pequenos que se faziam grande ao vencer o avô.

O pior mesmo era ser cobaia de Gabriela, Hannah e Mariana. As meninas donas de casa, vez ou outra, investiam na culinária. Molhos para sanduíches, que ninguém se aventura tascar. Lá estava ele como provador. Deus o acuda. Horas de terror. Depois, mal estar e dores na barriga. Mas nada de fugir. Dias depois, novamente, saboreando as invenções das netas.

Homem de muitas facetas. Marido companheiro, amigo legal, irmão conciliador, político, filho presente, tio exemplo.Se aqui estivesse, acompanhava orgulhoso os primeiros passos da bisneta Fernanda, esperando ansioso o chamado “bivô”.  De todas os papéis, o que viveu mais intensamente foi a paternidade. Homem de sabedoria, reservou para cada filho um ensinamento de acordo com o seu crescimento moral e espiritual. Deixou exemplos, vivenciados ao longo de quase 70 anos (partiu 21 dias antes de festejar as sete décadas no círculo carnal).

Ao mais velho, Carlos, ensinou a benevolência e bondade com o próximo. Prática exercida diariamente. Sem alarde, acolhe os que necessitam do aconchego, mata a sede do desconhecido, sacia a fome do irmão em desespero, envolve em amor o desesperançado.  Para Suzana, a filha do meio, talvez a mais difícil delas: o perdão. Essa mulher valente, perdoa e esquece as ofensas que a acolhem de surpresa, dilacerando a sua paz. Até parece que nada a atinge, mas as lições exemplificadas por seu Chico a fortalecem no vivenciar.

Para mim, muito provavelmente por ser rebelde e muito ainda a aprender, meu pai deixou o amor a vida. A paixão pelo viver e o forte sentimento familiar. Agarro-me, como ele, a todo e qualquer fio de esperança para manter-me viva e vivaz. Muitas vezes, o medo fortalecendo a minha caminhada, trazendo a alegria de assistir o nascer, morrer e renascer do dia, na certeza de que prosseguem vivendo aqueles a quem amamos.

Ao meu pai, trago no coração o agradecimento pelas experiências vividas e tantas ainda a serem experimentadas. Espero o reencontro, um dia, tendo na mente o que nos lembra Joanna de Angelis de que “o amor vence, quando verdadeiro, qualquer distância e é ponte entre abismos, encurtando caminhos”.

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