domingo, 2 de outubro de 2011

Esquecidos na dor

Rixas políticas, disputas por terras e gado, honra da família na ponta da navalha. As desavenças resolvidas sempre na bala ou faca. Quase sempre nas tardes de sábado, com a feira chegando ao fim. Os moradores já acostumados. Estranho era quando não ocorriam prisões, brigas nos bares estendendo-se pelas ladeiras, homens esfaqueados agonizando nas calçadas, mulheres correndo no socorro aos maridos e filhos, crianças chorando. Saboeiro lembrava a terra de ninguém, de homens que viviam para nada e por nada matavam e morriam.

As festas, seja da padroeira ou de conclusão do colegial, eram sempre um acontecimento. Muito mais por seu final.  A animação ficava por conta das bandas de música contratadas nas cidades paraibanas de Sousa e Patos ou em Recife. Mas, animação mesmo era o seu epílogo. Sem novidades. Tiros para o alto no meio do salão do Mercado Público. Correria. Artistas, desesperados, tentam se safar escondendo-se atrás das caixas de som. Homens e mulheres, esquecidos das lições de civilidade, disputam os dois portões de ferro fundido para chegar à rua principal e ao abrigo seguro.

As garotas abandonam os namorados em troca das colunas do prédio antigo do início do século XX, que resistiu as balas, mas não a ação de uma prefeita que o derrubou para construir um edifício nunca concluído. Mas essa é outra história. Voltemos ao cangaço em Saboeiro. Dias de conversê e especulações sobre o responsável pelo tiroteio. A cada festa, sempre o mesmo final. Mudava, vez ou outra, o seu autor.

No baú das muitas lembranças, carrego dois fatos que marcaram minha infância e me acompanham, semelhante a Josef de Franz Kafka, que acorda certa manhã e, sem motivos conhecidos, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por um crime não revelado. Lá pelos anos 70, a cidade acorda com a notícia de que um arremediado comerciante havia sido assassinato. Desvario. A polícia chega da vizinha Iguatu.Outro batalhão vai de Campos Sales. Prisões, ameaças. O autor do crime corre a boca miúda, mas ninguém com coragem suficiente para denunciar.

Em menos de dois anos, pai e filho são mortos em emboscada, no intervalo de oito meses. Dizem que por vingança.  Crimes de pistolagem que abalaram minha família. Tio e primo de meu pai, muito queridos. Choro, medos, novas ameaças. Lista com nomes das próximas vítimas corre de mão em mão. Especulações. Reza, muita, mas muita reza. Promessas aos pés de Nossa Senhora da Purificação. Pedidos para que a matança pare por ali. Proteção para os maridos, filhos, netos e sobrinhos. Os mais sensíveis recorrem aos calmantes prescritos por médicos apavorados. Famílias inteiras arribando para outras paragens.

Saboeiro precisou de décadas para se recuperar. Ninguém punido ou processado, diferentemente de Românovitch Raskólnikov, que se viu perseguido por sua incapacidade de continuar sua vida após o delito. O crime e castigo de Fiódor Dostoiévski não se coadunam com o cangaço experimentado na cidade de barões e viscondes, escravos e revolucionários esquecidos nos mármores do cemitério municipal, de sertanejos que viveram e travam diária luta pela sobrevivência. 

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