segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Nos tempos da felicidade!

Eu era feliz, atrevida, valente. Aceitava as provocações que a meninice me impunha ou seria eu que desafiava a normalidade da casa? Infância de desafios, conquistas, brincadeiras. Miúda, pernas finas, traquina e irreverente, nunca chorava, sempre olhando os adultos nos olhos. Em resposta, ralhos e castigos.

Trabalho imenso dei à família para me torcer, retorcer, medir e desmedir. Descobri, fui descoberta, cai, levantei, cai de novo e, novamente de pé. Domada, só pelo escuro da noite. Acreditava eu no poder da luz para afastar os fantasmas que teimavam em me perseguir madrugada à dentro. Venci. Fui livre. Vivi em liberdade.

Minha infância em Saboeiro foi rica em experiências. No desejo inquieto que não passa, enfrentava um novo desafio, nova conquista com bom humor e otimismo. Nas aventuras, sempre a companhia da prima Adailta, hoje comadre. Semelhantes a Dom Quixote de La Mancha e Sancho Pança, lá estávamos nós no limite entre fantasia e realidade, desdenhando a caça, pela doida aventura da caçada. Saíamos de uma para outra com a mesma intensidade e rapidez que trocávamos de roupa. Na maioria das vezes, impunes.

Diferentemente da maioria das amigas, as brincadeiras de casinha, bonecas e dona de casa não nos atraia. Enfrentar as correntezas do rio Jaguaribe, andar quilômetros a pé para fazer guisados, aperrear as mais ingênuas, jogo de cartas, estes, sim, nos empolgavam. Não poderia ser diferente. Exigiam perspicácia, coragem, atrevimento. Era a volúpia de viver dia a dia, hora a hora.

Por dias, investimos o tempo para infernizar a vida de seu Fransquinho, vigia do Grupo Escolar Olavo Oliveira. O homem cumpria rigorosamente as ordens da diretora Zuleide, minha tia, que proibiu crianças nas janelas do prédio. Enquanto à tarde, lenta, caia, lá estávamos nós descumprindo a determinação, para desespero do pai de duas amigas. Saia ele com ameaças e xingamentos tentando nos amedrontar. Efeito contrário, instigava. Minutos de correria, gritos, gargalhadas e o pobre homem, desesperado e esgotado, desistia.

Satisfeitas e vitoriosas, procurávamos outra brincadeira. Aquela perdera a graça, não se estendia mais que alguns minutos. O negócio era investir em outra vítima. As preferidas, Maria Dolores e Dinorá. De vez em quando, Helânia e Marta viravam “pato” no jogo de buraco. Sempre em dupla, vencíamos, eu e Adailta, todas as partidas de baralho, graças às armações. Desespero e indignação entre as adversárias. Horas de reclamações, intriga, ofensas. Nada nos atingia.

Éramos a personificação da boneca Emília, criação de Monteiro Lobato. Valha-me Deus! Birrentas, rebeldes, queríamos diversão. Nada melhor que Dinorá, menina religiosa, cheia de manias e medrosa. A todo instante recorria a Nossa Senhora da Purificação para não cruzar com uma vaca, não se afogar, chegar a casa ilesa, não cair... e lá vai. Em troca, promessas de rezar um terço de joelhos, assistir não sei quantas missas, passar dias com roupas de cor tal.

O drama da coitada é que nos incluía no pagamento do prometido. Adailta saia logo avisando: “não vou pagar promessa nenhuma”. Desespero para Dinorá, que acreditava ser a proteção para toda a turma. A resposta vinha nos banhos nos Caldeirões. A atraíamos para a pedra mais distante das margens do rio Jaguaribe em um lugar fundo. Bastava ela chegar ao local, após vencer o medo de afogamento e várias braçadas, eu e Adailta mergulhávamos de volta ao raso e nos despedíamos. Era um tormento. Grito, choro e pedidos de socorro.

Com Maria Dolores, as pequenas maldades eram perdoadas sempre no fim da tarde, sempre com meu pedido de desculpas. A amizade era selada, todos os dias, com um prato de sopa, preparado por sua avó, minha referência de vitalidade. Mulher alta, magra, cabelos compridos preso em um coque na nuca, dona Cristina era força e beleza. Nas horas de folga, brincava com as cartas de baralho acompanhada por prazerosas baforadas de cigarro de fumo.

Saudades da criança e do tempo em que ninguém me dizia não ser capaz.

Um comentário:

  1. O que mudou foi o tempo dona Suzete. A audácia e o atrevimento a senhora carregou da infância consigo. Beijos.

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