domingo, 11 de setembro de 2011

Histórias de Trancoso?


Em Saboeiro, coisas aconteciam que mais parecem histórias de Trancoso, como diria minha mãe. Numa terra tostada de sol e tintas de sangue, de homens e mulheres castigados, de pessoas mais duras que as pedras dos seus lajedos, estes fatos se transformaram em lendas, folclore. Tudo o que vi na minha infância e senti se refugia no fundo da sensibilidade, permitindo, no dizer de José Lins do Rego, “que a narrativa corra, como em leito de rio que a estiagem secara, mas que as águas novas encham, outra vez, de correntezas”.


Histórias de almas penadas, botijas, de amores proibidos, brigas de famílias, de homens embrutecidos, davam-me a sensação de espanto, fuga à realidade. As que mais excitavam a minha imaginação eram as contadas por meu tio Valdizar, que não se cansava de me relatar casos de catalepsia. 


Contava meu tio que a Serra do Flamengo, localidade afastada da cidade e de difícil acesso àquela época, viveu a dualidade dos sentimentos: dor, saudade, medo e fatos hilários. Atraso e crendices alimentavam seus moradores. Manhã de uma sexta-feira na década de 1950 chega a notícia da morte de uma mulher de 70 anos, aparentemente sem doença. Teria sido uma ataque cardíaco fulminante. 


A parentada e amigos correm para velar o corpo. O caixão no centro da sala de visita da casa, de porta e janela. As mulheres rezam, fazem coro. Os homens, conversam no terreiro, contam causos à espera do tempo. 


Choro e ladainhas cortam a noite. O breu toma conta do lugar. A luminosidade somente pelas lamparinas. Lá pelas 11 horas da noite, um dos mais chegados da família se aproxima do caixão e percebe algo estranho. Chama o filho da mulher e dispara:


- Cumpadre, dona Raimundinha está se mexendo


- Que é isso, amigo. Minha mãe está mortinha”, responde o sofrido filho.


Experimentado pela vida, o homem se afasta intrigado. Minutos depois, alvoroço. A mulher se levanta de repente e senta no caixão. Desvario. Homens, mulheres, crianças e velhos vivenciam o que diz o ditado popular: “cada um por si e Deus por todos”. Desatino. Gente pulando a janela da casa, terços perdidos na correria, mulheres se atropelando com crianças, velhos tentando alcançar os roçados. 


A mulher fica sozinha. Ninguém para libertá-la dos crisântemos que enfeitavam o seu corpo inerte no caixão. Somente com o dia claro é que a parentada se aproxima da casa para tomar ciência do que acontecera. Depois do susto, alegria por ter a matriarca de volta.


Casos jocosos não são prioridades do povo simples do sertão. Recentemente, assisti, em Fortaleza, a um fato que se não trágico seria engraçado. Um homem fora apresentado a um defunto durante o velório.  


Um filho dolorido com a morte do pai, recebia os cumprimentos dos amigos horas antes do sepultamento. Ao receber o abraço de um amigo, o levou para perto do caixão e foi logo dizendo, pesarosa: 


- Paizinho, esse é o fulano de tal, que tanto o senhor queria conhecer”.

O jovem levanta o véu que cobria o rosto e mãos do morto para que o amigo saudasse o seu querido pai. O pobre rapaz, pálido de surpresa e medo, recuou, sem saber o que dizer.

Em pensamento, sugeri eu ao amigo que deixasse as formalidades do momento e falasse do prazer em conhecê-lo. Poderia até travar um monólogo amigável, relatando casos vividos com o filho do homem. Seria agradável a família enlutada.



2 comentários:

  1. Ai meu Deus! Tem gente pra tudo...
    Apresentar o rapaz ao defunto e ainda tirar o véu foi o fim da picada! Capaz de até o próprio morto ter dado risada onde quer que estivesse...

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  2. E o pior é que ficamos todos sérios e compenetrados. Parece história de Trancoso, mas é verdade

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