domingo, 31 de julho de 2011

Silêncio que respeita!

Saudades de um passado que ainda não passou. Permanece no coração que se enche e escorre pelos olhos. Saudade do riso fácil, do aconchego com o olhar miúdo, do aperto no braço, das passadas firmes, da voz mansa, do cheiro forte, do amor incondicional. Saudades do amante da vida.

Estaria eu recusando o presente que me machuca ou tentando absorver a sua lembrança para matar a fome da ausência? Busco nas fotografias antigas, nos vídeos, um pouco de mim e o encontro. Sete anos se passaram. Parece que foi hoje. A mesma dor, surpresa, a alma dilacerada, o coração destroçado. Manhã de sábado de 31 de julho de 2004, a casa levanta alvoroçada com o seu silêncio. Chamo e ele não responde. Partiu sem um adeus ou até logo. Teria ele se despedido na noite anterior ao me cravar um olhar sereno e amoroso?

Penso que ele preferiu assim. Ir-se como sempre viveu. Gritando em silêncio, amando sem alarde, doando-se sem esperar em troca. Era como menino, sentia como menino, vivia como menino. Devoto de Nossa Senhora de Fátima, vivenciava, o que São Paulo considerava a mais excelente das virtudes, a caridade, que se traduzia no desapego, respeito às diferenças, bondade, liberdade.

No dizer dos parentes e amigos, conciliador. Para mim, generoso com uma pitada de cumplicidade. Viveu igual ao dizer de Cora Coralina “colo que acolhe, abraço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que escorre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove”.

Incentivou o caminhar livre dos filhos, a escolha da profissão, os companheiros de jornada, a vida por eles traçada. Apoiou cada decisão, embora discordando de algumas. Sentia as suas dores, aflições, medos. Às crias, cabia a certeza do apoio, aconchego, solução.

Aos netos, sempre o sim. Nunca, o talvez ou o não. A eles, tudo era permitido. Capricho nos mimos e agrados, riso das pequenas transgressões, reforçando a crença de que avô deseduca. E não adiantavam os pais ou mães virem com proibições, cobranças, broncas. Em sua casa, os pequenos reinavam. Os três mais velhos – Pedro, Lucas e Victor – comandavam as mais terríveis brincadeiras como cercar as árvores frutíferas da avó Lúcia com pólvora e depois atear fogo. No máximo, correia. Castigo, abolido na família por decreto de seu Chico.

O avô passava horas ouvindo a doce e meiga Gabriela contar sobre a escola, bonecas. Com Hannah Kelly, compra de guloseimas. Para Mariana, a quem não se cansava de elogiar a beleza, reservava horas prazerosas com os desenhos animados. O preferido, pica-pau. Yasmynhe, orgulho da inteligência e emoção com as cartinhas por ela escrita. Aos caçulas Mateus e Tiago, jogo de futebol. A cada drible ou gol, gritaria dos pequenos que se faziam grande ao vencer o avô.

O pior mesmo era ser cobaia de Gabriela, Hannah e Mariana. As meninas donas de casa, vez ou outra, investiam na culinária. Molhos para sanduíches, que ninguém se aventura tascar. Lá estava ele como provador. Deus o acuda. Horas de terror. Depois, mal estar e dores na barriga. Mas nada de fugir. Dias depois, novamente, saboreando as invenções das netas.

Homem de muitas facetas. Marido companheiro, amigo legal, irmão conciliador, político, filho presente, tio exemplo.Se aqui estivesse, acompanhava orgulhoso os primeiros passos da bisneta Fernanda, esperando ansioso o chamado “bivô”.  De todas os papéis, o que viveu mais intensamente foi a paternidade. Homem de sabedoria, reservou para cada filho um ensinamento de acordo com o seu crescimento moral e espiritual. Deixou exemplos, vivenciados ao longo de quase 70 anos (partiu 21 dias antes de festejar as sete décadas no círculo carnal).

Ao mais velho, Carlos, ensinou a benevolência e bondade com o próximo. Prática exercida diariamente. Sem alarde, acolhe os que necessitam do aconchego, mata a sede do desconhecido, sacia a fome do irmão em desespero, envolve em amor o desesperançado.  Para Suzana, a filha do meio, talvez a mais difícil delas: o perdão. Essa mulher valente, perdoa e esquece as ofensas que a acolhem de surpresa, dilacerando a sua paz. Até parece que nada a atinge, mas as lições exemplificadas por seu Chico a fortalecem no vivenciar.

Para mim, muito provavelmente por ser rebelde e muito ainda a aprender, meu pai deixou o amor a vida. A paixão pelo viver e o forte sentimento familiar. Agarro-me, como ele, a todo e qualquer fio de esperança para manter-me viva e vivaz. Muitas vezes, o medo fortalecendo a minha caminhada, trazendo a alegria de assistir o nascer, morrer e renascer do dia, na certeza de que prosseguem vivendo aqueles a quem amamos.

Ao meu pai, trago no coração o agradecimento pelas experiências vividas e tantas ainda a serem experimentadas. Espero o reencontro, um dia, tendo na mente o que nos lembra Joanna de Angelis de que “o amor vence, quando verdadeiro, qualquer distância e é ponte entre abismos, encurtando caminhos”.

3 comentários:

  1. Dona Suzete, agora a Senhora me fez chorar. Num domingo à noite, não é coisa para fazercom a gente não. Minha mãe, a Dona Suzete mesmo, que perdeu a dela aos 9 anos, sempre disse que a gente só era gente enquanto tivesse pai e mãe. Sempre tive medo desse dia chegar. Se um deles vai, a gente fica meio perdido pelo caminho, meio 50%, meio nada.. É por isso, talvez, que seu pai tenha lhe conduzido tão bem, lhe dado tanto amor e cumplicidade por toda a vida que viveu ao seu lado. Estava lhe preparando para continuar sendo gente, mesmo sem a presença física dele aqui. Beijos.

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  2. Ele nos faz muita falta, a toda a família. Ele era a nossa força, nossa alegria. Era um ser muito especial. Não tinha medo de viver, enfrentava os desafios com o olhar pra frente, determinado. Dona Suzete, sua mãe, tem razão. Perdi 50% de mim. Os outros 50% são meus filhos e minha mãe, que também é força, coragem e fé. Que ela fique ainda por muito tempo. Sou egoísta, preciso de sua companhia e rezas.

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  3. Sete anos? É... O tempo não para. Amiga, esse é o sentido da existência. Deixar marcas no coração das pessoas e ser eterno em suas lembranças.

    Este ano também completaram 10 de partida do meu. É uma ausência sempre sentida e uma saudade sem tamanho.

    Beijo.

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