quinta-feira, 9 de junho de 2011

Empréstimo a Deus

Região árida, sol inclemente, miséria e fome dominam o cenário daquele lugar tórrido. A vida em Saboeiro passa devagar, preguiçosa. O ponteiro do relógio teima em não querer andar. Os homens se esgueiram pelas esquinas da cidade, sem muito que fazer. Às mulheres, cabe debulhar terços, rezar ladainhas, de preferência em latim para chegar mais rápida a Deus, fazer promessas difíceis de serem cumpridas. Quanto maior o sacrifico mais rápido o atendimento.

A cidade vinha de dois anos de seca. A fome tirando a dignidade de homens e mulheres valentes. Velhos, adultos e crianças perambulam à espera do milagre. Os pequenos saciados pelos peitos das mães esquálidas, quase sem forças para andar. Numa manhã de sábado, dia de feira, alvoroço lá em casa. Um grupo de trabalhadores rurais estava chegando para saquear o comércio e, quem sabe, as casas.

“Fechem as portas, crianças para dentro. Ninguém sai”. A ordem partia da cozinha. Era Telma, nossa empregada, moça gorda e gestos fortes, preparando-se para o pior. Como obedecê-la?, impossível. Enquanto minha irmã Suzana aceita acompanhar tudo de uma das janelas no segundo andar da casa, corremos, eu e meu irmão mais velho Carlos, para a casa do tio Valdizar, onde os homens se reuniram para decidir o que fazer com as famílias famintas que vinham da zona rural em busca de socorro.

Minha mãe Lúcia ao nos ver foi logo ralhando, nos mandando de volta. Para nossa sorte, antes de chegarmos à soleira da porta, o cortejo entrava na cidade. O jeito foi ficar ali e assistir, o que considero um dos maiores ensinamentos de solidariedade e coragem. Mais de 500 pessoas se arrastavam, determinados a pegar o que lhes era de direito: alimento.

Horas de conversa entre meu pai Chico, tio Valdizar, Chico Nabor (rico comerciante), o ex-prefeito Ademor, Juarez e um grupo de sete ou oito agricultores. Crianças, só eu e meu irmão. O prefeito não estava na cidade. Havia viajado com a família para a Capital três dias antes. Lembro-me de seu Maciel, um senhor de quase 70 anos, cabelos brancos, mãos calejadas, rosto queimado pelo sol. Resultado de uma vida de trabalho na roça, arando a terra, plantando e colhendo o sustento da família. Nos dias de feira, ia sempre lá a casa conversar com minha mãe, ensinar uma oração, levar coalhada, mel.

Seu Maciel me fascinava. Sempre sereno, nunca reclamava da dureza da vida. Homem de muita fé. Na reunião, manteve a calma, mas decidido: não aceitaria que os seus voltassem para casa de mãos vazias. Estava disposto a tudo. Argumentos pra cá, lamentações pra lá e seu Maciel inflexível. Eu já agoniada, estava para interromper aquele conversê dos homens. Dê logo às sacas de arroz, feijão, rapadura, a farinha. Esse povo tá morto de fome.

Decisão tomada. Meia hora depois, um caminhonete parava em frente à praça com os alimentos. Seu Maciel e outros quatro homens começaram a distribuição. Marli, mulher de pouco mais de 40 anos com aparência de 60 com quatro filhos pequenos e mãe viúva de 80 anos para cuidar, foi uma das últimas da fila. Esperou que os homens e mulheres famintas fossem logo atendidas. Esperar parece ser sua sina. Aguarda a volta do marido e filho adolescente que haviam arribado para São Paulo no ano anterior tentar a sorte.Notícias, de vez em quando e promessas da volta.

Cada família teria direito a alguns quilos de mantimentos, o que asseguraria 15 dias de comida na panela. Início da tarde, todos se preparavam para voltar. Faltam apenas os líderes do movimento receber a sua partilha. Seu Maciel, entregou a sua parte a Marli. Não entendi. Ele, velho, cansado, com mulher, filhos e netos para sustentar e abre mão do que é seu por direito.

O carro que trouxe o sustento, levaria de volta parte dos invasores. O restante, viajou em um caminhão alugado pelos comerciantes da cidade. Logo que seu Maciel se instalou na cabine do automóvel não me contive. Corri e da porta gritei: “por que o senhor deu a sua parte para aquela mulher?’” . Ele sorriu, colocou a cabeça pra fora e respondeu: “ela precisa mais do que eu. Não morrerei de fome. Sábado volto e almoço na sua casa”. Zangada, retruquei: “ah, dá o que é seu e depois vai comer lá em casa”. Sonora gargalha ecoou o que me deixou ainda com mais raiva. Então, o velho homem lembrou: “menina, quem dá aos pobres, empresta a Deus”.

3 comentários:

  1. Eu completaria, humildemente, a frase popular. Quem dá alguma coisa a seu semelhante está servindo a Deus. Grandes batalhas pedem grandes heroínas. Seja grande, Joana!

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  2. Suzete, parbéns pelo blog.
    Estou seguindo seu blog. Ribeiro(Dep. pessoal - OPOVO)www-pensar.blogspot.com

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  3. É por tudo isso que você tornou-se esta pequena-grande mulher.

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