domingo, 1 de maio de 2011

Conto de fada às avessas


A poetisa portuguesa Florbela Espanca define o casamento como “uma coisa revoltante” e o único sentimento para justificá-lo é o amor. Para a bela e alegre Henriqueta, ele é sinônimo de amargor e sofrimento. Aos 19 anos foi obrigada a se casar, sem amor, com o primo Fernando, que se apaixonou perdidamente pela beleza e frescor de sua juventude.
Com compromisso firmado com outra prima, Silvana, moça alta, desengonçada e de pernas finas, Fernando desfez o noivado de quase dois anos, deixando a jovem em total desespero. Não sentiu dó da coitada. Estava enamorado de Henriqueta, que suspirava por outro rapaz, a quem jurara amor eterno.
De família abastada, Fernando marcou a data do casamento, em comum acordo com dona Francisca, viúva pobre e mãe de Henriqueta. Numa manhã ensolarada, começaram os preparativos para o casório. A mãe convidou as amigas e primas para ajudar a filha a se vestir. Enquanto o noivo a aguardava na Igreja Matriz, a jovem lutava contra o destino. A mãe colocava o véu, ela tirava à meia. Uma prima abotoava o vestido, Henriqueta se despenteava. E o perrengue continuou por horas, vencido por dona Francisca.
Henriqueta entrou chorando na nave principal, levada pelo irmão mais velho. Talvez prenunciando o que a vida lhe reservava. Anos de mágoas, desilusões e tristezas, mas sem, no entanto, perder a doçura. Amante das artes, recitava Camões e produzia e encenava peças teatrais. O marido logo arranjou uma amante, com quem teve uma filha. Desfilava com as duas pelas ruas da cidade, enquanto a bela jovem se transformava em uma mulher triste e sozinha. A despeito da traição, o casal teve quatro filhos. Numa noite de lua cheia, a concubina foi assassinada. Fernando chorou dias. O seu maior desespero foi desconfiar de um dos filho como autor do crime.
Entristecida, Henriqueta trocou o interior por Fortaleza. Veio embora trazendo as duas filhas caçulas, sem trocar uma única palavra de carinho ou despedida com Fernando. O sofrimento era compensado pela música. Entre um afazer doméstico e cuidados com as meninas, compunha e cantava canções de esperança e amor. Quando o marido e os dois filhos foram assassinados, calou-se. Vestiu preto, desfiou rosários, rezou missas. Guardou o luto, como diz um amigo. Chorou durante meses. Cansada daquele amargor, trocou os vestidos pretos por floridos, sendo criticada pelos parentes. Não se incomodou. A vida já muito lhe havia cobrado. Retomou a lida na casa, a música. Aos 90 anos, continua “vivendo como Deus quer”, de dores e sacrifícios. Ela garante que continua sonhando, não mais os ideais da adolescência, de a vida presenteá-la com um marido que, além de amigo, seja o seu amparo.  Perdida no passado, diz sonhar com a suprema e grande lei da natureza que liberta as mulheres das amarras de mães dominadoras e de amores cruéis.

Um comentário:

  1. Há muitas Heriquetas. Igualmente amarguradas, com dores e sacrifícios...

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