terça-feira, 3 de maio de 2011

Resposta ao machismo


Em reuniões de trabalho com a presença de pelo menos quatro homens, entre uma decisão e outra, piadas machistas são contadas para aliviar a tensão. Na mesa de bar e em festas de família, inconfidências sobre aquela ‘boazuda’, cujo balanço das ancas é motivo de fetiche para os marmanjos. Homens inteligentes, formadores de opinião não fogem a essa prática equivocada, com raízes na antiga cultura greco-romanas e cultuada em países latino-americanos, a despeito das mudanças de comportamento que vêm ocorrendo.

Ontem, ouviu uma piadinha dessas sem graça, que me preservo ao direito de não reproduzi-la. Logo me veio à lembrança dona Miguelina. Sem nunca ter ouvido falar em Betty Frida ou queimado sutiãs em praça pública, deu uma lição em todos os machistas que mantêm a crença na inferioridade da mulher ou as trata como objetos de consumo. Em meados de 1970 iniciou a revolução feminista nas redondezas de Saboeiro. Acompanhei o desabrochar da valente Miguelina, tentando entender os porquês de cada decisão ser motivo de escândalo na cidade.

Criança metida à psicóloga é o inferno no purgatório, dizia minha tia-avó Lurdes. Hoje concordo com ela, mas no alto dos meus oito anos tentava decifrar Miguelina e Luiz. Ele, homem garboso, altivo e falante. Ela, magra, sempre calada, tímida, cabisbaixa. Pensava eu, o que ele tinha visto naquela mulher tão sem graça. Sempre que os dois visitavam meus pais, corria eu para observá-los. Meses a fio e nenhuma resposta consegui. Até que um dia fui surpreendida por dona Miguelina na cozinha de casa conversando com minha mãe.

 As mãos trêmulas seguravam um copo com garapa. Sorvia a beberagem devagarzinho para se acalmar. As frases eram entrecortadas por soluços. Ela reclamava o marido, dizia não saber por que havia aceitado, anos atrás, o pedido de casamento. Pensava eu, porque seu pai é rico e ele está interessado em seu dinheiro (quanta perversidade na cabeça de uma criança).  Mas, parecendo ter me ouvido, logo respondeu, por amor, o que não a livrou de momentos de amargor, tristezas, solidão.

O pior eram as humilhações.  Luiz namorava a vizinha Ritinha, 20 anos mais nova que a esposa. Bilhetes eram trocados por cima do muro, marcando os encontros. Tudo sobre as vistas de dona Miguelina. Na noite anterior a conversa com minha mãe, ela havia encontrado um colar de ouro 18 guardado em uma das gavetas da cômoda do quarto. De súbito, pensou se tratar de um mimo do marido em comemoração aos 12 anos de casamento, no mês seguinte. Para seu desespero, horas depois cruzou com a moça usando a jóia. Indignada, encheu-se de coragem e foi tomar satisfação com o marido e teve como única resposta que a namorada merecia o presente. Cheio de razão, Luiz a proibiu de se meter naquela história porque era coisa de homem.

O desrespeito do marido a encheu de coragem. Ameaçou ir embora com os filhos e se arranchar na casa dos pais. Exigia que ele acabasse o namoro naquele mesmo dia. Não esperou resposta, foi logo se aconselhar com minha mãe, que, conciliadora, tentou colocar panos quentes. Explicava que a vida em comum não é fácil e a mulher deve perdoar os deslizes do companheiro.Homem grosseiro, Luiz mandou chamá-la imediatamente. Não deu tempo para a mulher se despedir de minha mãe. Foi logo correndo atender ao chamamento do marido. Como não poderia perder “minha paciente” a acompanhei de longe. Ouvi quando ele a proibiu de sair de casa, conversar com as amigas. Missa, só aos domingos e acompanhada dos filhos. Era o castigo por ter se rebelado. Os pais de dona Miguelina ao tomarem ciência dos fatos correram à filha para aconselhá-la a pedir desculpas ao marido.

Para minha surpresa e de toda a cidade, a frágil e sem graça mulher anunciou que estava deixando o infiel marido. Ele, por sua vez, a ameaçou de várias maneiras. A pior delas era abandonar os filhos e a mulher à própria sorte. As ameaças não amedrontaram a minha segunda heroína. Pelo contrário. A encheu de energia para expulsar o homem com uma espingarda, deixada anos atrás pelo sogro.

Dona Miguelina foi a primeira mulher de Saboeiro a se separar do marido e ainda exigir todos os seus direitos legais. Enfrentou com muita dignidade a rancorosa e machista sociedade local. Educou os filhos, todos cursaram faculdades. Dois deles residem no exterior – um é médico em Bruxelas e a outra, pesquisadora nos Estados Unidos.

No ano passado, dona Miguelina partiu para a Pátria Espiritual aos 85 anos com a serenidade de um anjo e a sensação do dever cumprida. Criou, sozinha, os filhos e ainda cuidou do ex-marido quando ficou paralítico devido a um AVC e assumiu a administração das fazendas herdades de seus pais e as do Luiz. Com 70 anos aprendeu a tocar órgão e, aos 80 navegava na internet para se “atualizar sobre o mundo”, explicava. 

3 comentários:

  1. Amei a história da Miguelina!!!!
    Exemplo de mulher valente e determinada!!!!
    E como o mundo deu voltas pra ela...
    Fã da D. Miguelina!!!
    :)
    Patrícia Sena

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  2. Sou mais nós. Nós e dona Miguelina.

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