quinta-feira, 5 de maio de 2011

Jornalismo imparcial?








Uma das primeiras orientações que recebi ao ingressar no curso de Comunicação Social da UFC foi de que jornalista deve ser imparcial e racional, segurar a emoção, não se envolver com a história que vai contar aos leitores. Sai da faculdade com todas essas normas e procedimentos definidos na minha cabeça. Nada de sentimentalismo. Narrar os fatos com toda precisão, sem nenhum envolvimento ou com uma posição definida sobre o fato a ser registrado. Tenho de ser neutra, qualquer que seja a situação.



Coitada dessa jovenzinha inexperiente. Foi preciso cortar na carne para compreender que não posso ser completamente imparcial. Como pessoa, sou dotada de signos e significados, portanto, incapaz de falar sobre um assunto sem inserir o meu ponto de vista. E essa imparcialidade acontece quando escolho a fonte que acredito ser a melhor e, ao escrever, e coloco as informações que acho mais importantes.

Passei anos nessa luta autofágica. Até que um dia assumi minhas emoções, medos e, principalmente, envolvimento com a notícia. No início da década 1990, em um ano de seca no Ceará, bispos decidiram fazer um relatório sobre a situação e encaminhá-lo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNNB). Para fazer esse diagnóstico era preciso viajar pelo Interior. Como repórter idealista – vale ressaltar que continuo sendo – pedi ao jornal O POVO, onde trabalhava, para fazer as matérias. Decidimos por uma série de reportagem.

Munida com caneta, papel, gravador e uma máquina Olivetti parti com os bispos, cheia de entusiasmo. Não sabia o que me esperava. Uma das maiores lições de vida que o jornalismo proporciona a um ser humano. Nascida e criada nos Inhamuns pensei conhecer tudo sobre fome, seca, sofrimento e que nada disso me surpreenderia. Já havia presenciado homens trabalharem o dia inteiro sob o sol a pique e ter como único alimento feijão com farinha. Nos 15 dias de peregrinação pelo chão rachado do sertão, realmente me deparei com esse quadro, cruzei com homens, mulheres e crianças resignados, com uma fé inabalável em Deus.

O que ainda não sabia era que nesse ambiente de desolação há pessoas especiais. Pois bem. Em um distrito de Quixadá, decidi por não acompanhar a reunião dos bispos com os trabalhadores rurais. Queria ouvir outros depoimentos. Sai por ai, andando pelas ruas de chão batido. Fim de tarde, o sol se preparando para dormir. Passava pelas casas, cumprimentava um ou outro, mas não parava. Após alguns minutos de caminhada cheguei a uma residência simples. Resolvi entrar.

Fui recebida por uma senhora com a aparência de quase 50 anos, grávida, muito magra. Na verdade, tinha menos de 30, mãe de sete crianças. Estava esperando o oitavo rebento. Pensei logo em travar conversa sobre filhos, marido, a vida, trabalho. Tinha a minha personagem. Antes mesmo de me apresentar, ela me sorriu um sorriso aberto e me olhou com uns olhos tão serenos que fiquei entalada, sem ação. ‘Boa tarde moça, o que deseja?’, perguntou-me. Senti vontade de sair correndo, mas o dever me chamava. Respondi baixinho: ‘sou jornalista, gostaria de entrevistá-la’. Ele me mandou entrar, mostrou-me a casa humilde e disse que há dias a família almoçava feijão. E o jantar?, perguntei. Ela e as crianças comiam farinha. Tudo lá era racionado. Mas, e o marido, o que janta. Ela me respondeu: ‘sal. Come sal e depois bebe água porque enche o bucho’. Olhei para ela assusta e cruzei com um olhar tão doce, meigo e sereno que não consegui segurar as lágrimas. Elas rolavam pelo rosto como que pedindo desculpas pela vida que levava na cidade grande, de shoppings, cinema, teatro, almoços e jantares fora. Também por achar que jornalista não tem sentimentos, não se emociona. Naquele dia me libertei das regras do jornalismo. Daquele dia em diante assumi minha indignação com a injustiça, chorei ao ver jovens envolvidos com drogas, solidarizei-me com mães que lutavam para libertar os filhos da violência e criminalidade.

sou parcial, sim!

Um comentário:

  1. Convivi com cenários idênticos. Com realidades tão brutais quanto a que você descreve acima. Trago isso comigo. Parabéns por ser parcial.

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